As religiões, qualquer uma delas, quando vividas na sua forma mais genuína, são uma força de união e de construção de paz.
Luís M. Figueiredo Rodrigues
O modo como pensamos hoje o mundo como “casa” foi motivado e, ao mesmo tempo, consciencializa para o facto de que tudo está interligado: a distância física ou temporal não nos desresponsabiliza. Por outro lado, o fenómeno da globalização tem incrementado sentimentos populistas de antiglobalização, pelo menos em algumas regiões do globo. Arne Bigsten ensaia um modelo de resposta a esta situação, articulando os três valores da Revolução Francesa: liberdade, igualdade e fraternidade. Esta tríade é percebida como a síntese do que as políticas devem garantir, para estar ao serviço efetivo dos cidadãos, proporcionando-lhe o bem-estar almejado. Aqui, se a liberdade e a igualdade têm sido objeto de esforços de proteção, a fraternidade já não o é tanto. Esta tem-se vindo a sentir ameaçada, mercê da globalização e do desenvolvimento tecnológico.
A fraternidade tem implicações económicas, políticas e sociais de identidade, que determinam a coesão social. O determinante económico da ameaça à fraternidade ou da identidade partilhada é a desigualdade económica, que se reflete nos tipos de empregos e rendimentos a que se pode aceder. A componente política, essa, diz respeito à identidade nacional ou regional. A componente social da identidade é um sentimento de valores culturais partilhados. Com o enfraquecimento de uma identidade partilhada, diminui também a solidariedade, fazendo crescer, em seu lugar, a desconfiança entre estratos sociais, sobretudo dos menos favorecidos em relação aos mais favorecidos. É este o terreno favorável para que os populismos possam difundir as suas narrativas, legitimadoras de discursos de ódio e violência.
Torna-se, então, imprescindível perceber quais os fatores que podem combater os fenómenos de desumanização e violência, com o objetivo de reaproximação e diálogo entre as culturas, promoção de uma cultura de paz, rejeição da violência e do ódio, e acreditando na preciosa contribuição do diálogo entre culturas diferentes. Tudo isto, a partir da constatação de que as religiões aumentam a consciência dos valores comuns de todos os seres humanos e criam um ambiente propício para alcançar a paz e a compreensão entre todos e em todos os níveis, local, nacional, regional e global, como os recorda o “documento Delores”, sobre a educação como um tesouro a descobrir.
De facto, a religião, ao longo da história, tem desempenhado um papel central na formação de valores, identidades e modos de ser e estar nas sociedades. Quando falamos de um mundo global mais fraterno, é importante refletir sobre como as crenças religiosas podem ser um forte promotor da construção de um mundo mais fraterno, apesar das suas complexidades e, por vezes, contradições.
As religiões, qualquer uma delas, quando vividas na sua forma mais genuína, são uma força de união e de construção de paz. Criam espaços de diálogo, onde a diversidade é respeitada e as diferenças são vistas como riquezas. Isso é crucial num mundo globalizado, onde o contacto entre culturas é inevitável e crescente, mas também muito enriquecedor.
Daí que nunca é de mais refletir na importância que teve a assinatura do Documento sobre a fraternidade humana em prol da paz e da convivência comum, pelo Grão Imame de Al-Azhar Ahmad Al-Tayyeb e o Papa Francisco. Este gesto, e com tudo que ele potenciou e gerou, é uma evidência eloquente de como as religiões podem contribuir para um mundo mais humano e humanizador, uma autêntica “casa comum”.
Convém ter presente que o conceito de fraternidade não é um produto originário da Revolução Francesa, antes tem as suas raízes bem fundadas na história da humanidade, percebida numa perspetiva europeia. Importa, então, fazer um recorrido sobre o modo como a fraternidade foi percecionada ao longo da História
Luís M. Figueiredo Rodrigues
No opúsculo La Fraternité, Pourquoi? (2019), Edgar Morin contrapõe ao modo darwuinista de compreender a sociedade uma proposta baseada na ajuda mútua e na cooperação. A obra A Origem das Espécies por meio da Seleção Natural, ou A Preservação das Raças Favorecidas na Luta pela Vida (1859), de Charles Darwin, influenciou uma certa compreensão da evolução das sociedades, de um modo tal que a teoria da seleção natural justificou a competição entre os indivíduos e as diversas estratégias que visavam que só sobrevivessem os mais aptos. Esta seleção natural levaria a um aperfeiçoamento e, consequentemente, a um progresso qualitativo. Contudo, Morin, apoiando-se no pensamento de Pierre Kropotkine, sobretudo na obra O Apoio Mútuo: Um Fator de Evolução (1902), argumenta que a vida, mais do que na competição, apoia-se na cooperação. Cada uma das espécies, ao desenvolver-se no âmbito de um ecossistema concreto, evidencia que as que melhor se adaptam não são as mais agressivas, mas sim as mais solidárias. Em cada ecossistema há predadores e agressores, que competem com o meio, mas também há a interação positiva, a simbiose e a cooperação, imprescindíveis para o desenvolvimento das espécies e da vida, seja ela de que reino for. Veja-se, a título de exemplo, a importância da polinização, onde a cooperação entre os insetos e os vegetais é imprescindível para a sobrevivência de todos. Edgar Morin conclui que é a resistência à crueldade de tudo o que é predatório e ameaçador para a vida que suscita as práticas de entreajuda e complementaridade, capazes de criar amplos espaços de solidariedade, imprescindíveis para que haja vida. Esta evidencia a necessidade, sempre, de relação com outros, seja através de relações parasitárias ou predatórias, seja através de associações ou simbioses. Em síntese, a existência da vida acarreta sempre o conflito e a cooperação.
A partir deste enquadramento, percebe-se melhor que, face aos perigos comuns de âmbito global – sejam eles ecológicos, económicos, bélicos ou outros –, Edgar Morin preconize a necessidade imperiosa de uma fraternidade humana que salvaguarde a nossa comunidade humana de destino. O conceito de fraternidade aglutina estas problemáticas de uma forma única: como uma espécie de autoajuda, cooperação ou comunidade, e como um vínculo de âmbito familiar, laboral ou político. Diante do inimigo, da miséria humana ou da solidão, talvez a fraternidade se denomine mais através do sinónimo “solidariedade”. Já diante do estrangeiro, do estranho e/ou daquele que é diferente, por qualquer motivo, se denomine como “hospitalidade”. O fulcral é que a fraternidade se caracteriza pela impossibilidade de ser imposta por aqueles que detêm a autoridade; é preciso que surja de cada sujeito, dado que se caracteriza pela relação afetiva e afetuosa interpessoal. Não é, pois, de estranhar que cada elemento da tríade da Revolução Francesa (1789) – liberdade, igualdade e fraternidade – tenha visto desenvolvimentos distintos. Se os primeiros dois foram amplamente refletidos, regulados, defendidos e promovidos, já o último se vê sucessivamente olvidado.
Convém ter presente que o conceito de fraternidade não é um produto originário da Revolução Francesa, antes tem as suas raízes bem fundadas na história da humanidade, percebida numa perspetiva europeia. Importa, então, fazer um recorrido sobre o modo como a fraternidade foi percecionada ao longo da História.
História
No mundo da Grécia Antiga, o conceito de irmão dizia-se com o recurso a duas palavras distintas: adelphos e frater. A primeira expressava a fraternidade própria daqueles que partilham o mesmo sangue, ao passo que a segunda – frater – sofreu uma evolução, passando a designar um vínculo de irmandade, já não de ligações familiares, mas proveniente de uma ligação entendida mais em sentido político.
É com Platão que o conceito de “fraternidade” encontra a sua estabilidade, ao considerar que todos os membros de uma cidade são “irmãos”. Esta irmandade é gerada não pelo sangue, mas pela polis. Esta noção de fraternidade cívica tem o seu expoente máximo em Platão, quando diz: “vós sois todos irmãos nesta cidade” (A República, 415a). A desconstrução do significado de “fraternidade”, oriundo da parentalidade familiar, tem como objetivo consolidar uma fraternidade política, capaz de garantir solidariedade, eficiência e concórdia numa comunidade de cidadãos. Estes ajudar-se-ão mutuamente, em caso de qualquer necessidade. A polis passa a ser entendida como a oíkos, o lugar onde cada cidadão sabe que tem um lar.
Facilmente se vê que a fraternidade, o sentir-se irmão (adelphós), ainda que para designar realidades políticas e institucionais, tem sempre subjacente um tipo de relação interpessoal que almeja a consanguinidade ou, pelo menos, ser vista como tal.
Olhando a partir de uma perspetiva europeia, o período que se segue é o medieval, com clara influência judaica, cristã e islâmica. Os textos denominados pelos cristãos de Antigo Testamento (Bíblia), que são, na sua maioria, comuns a judeus e cristãos, na sua versão dos LXX – a que foi traduzida para grego, após a diáspora dos judeus – utilizam o vocábulo adelphós (cf. 1Mc 12, 10) com o significado de “fraternidade” e “amizade”, percebida no contexto de aliança política com povos estrangeiros. Olhando um pouco mais para o conteúdo das narrativas inscritas nos textos sagrados, percebe-se que a fraternidade se baseia na existência de um Deus – o de Abraão, Isaac e Jacó – que não é exclusivo dos descendentes de Abraão. É de toda a humanidade, é universal. Na verdade, isto implicou a compreensão de dois modos complementares de entender a fraternidade: uma fraternidade entre irmãos, dentro da comunidade, e uma fraternidade universal, porque todos criados por Deus.
Com o Novo Testamento, o cristianismo começa a entender a fraternidade como uma relação que, baseada na fé em Jesus Cristo, se dirige ao próximo e à comunidade cristã, em razão da mesma fé, já não por pertencerem à mesma pátria. O conceito de comunidade cristã desborda os limites das fronteiras políticas. A separação entre os que são irmãos dos que não o são, agora, deixa de ser fundada numa escolha política e na pertença a uma determinada polis, para se fundamentar na crença de um Pai comum, um único Deus, no qual os cristãos se consideram irmãos.
Os relatos dos evangelhos são esclarecedores quanto à utilização do substantivo adelphós e, por conseguinte, ao entendimento subjacente ao conceito de fraternidade. Esta não é entendida como a consequência de haver uma relação de consanguinidade, mas é antes baseada numa decisão espiritual, na resposta positiva à fé em Deus. Mesmo quando há uma relação de fraternidade biológica, a fraternidade espiritual sobrepõe-se. Os textos neotestamentários apresentam uma outra ideia que acaba por ser fundamental para se entender o significado da fraternidade universal dos cristãos: a referência aos pequeninos (cf. Mt, 31-46). Os pequeninos e necessitados são entendidos como os “irmãos preferidos” de Jesus Cristo. Os que aceitam ser pequeninos, acolhendo o projeto de Deus como uma criança, esses é que são considerados “filhos de Deus”. O cristianismo fundamenta a fraternidade não apenas numa adesão livre à comunidade cristã, mas sobretudo na participação comprometida com a causa dos pobres e dos humildes, manifestando deste modo a sua identificação com o destino de Jesus Cristo.
Durante grande parte da Idade Média, o conceito de fraternidade ficou como que arredado da esfera social, restringindo-se àqueles que vivam nas comunidades dos mosteiros. Foi preciso chegar à Baixa Idade Média, aos séculos XII e XIII, para que, graças ao contributo árabe, os textos de Aristóteles começassem a ser conhecidos no ambiente latino e ganhassem lugar de relevo nos ambientes intelectuais. A reflexão sobre a amizade útil, agradável e honesta fez com que se tomasse consciência da importância do tema da amizade para a concórdia social. Na sua Ética a Nicómaco, Aristóteles oferece os pressupostos que hão de permitir fundamentar a amizade social. Tal como os irmãos se amam em razão da sua comum paternidade, embora sejam pessoas diferentes, também aqueles que vivem juntos, num mesmo território, estabelecem entre si relações similares à dos irmãos. Daí que a amizade fraterna seja o que mantém as sociedades coesas, em bom rigor bem mais do que a justiça. Em termos sociais, a amizade fraterna denomina-se concórdia.
No Renascimento, o conceito de fraternidade continua a ser muito influenciado pela conceção grega e medieval, bem como pelas concretizações que se realizavam nas confrarias, guildas e irmandades. Estas agremiações, de cariz religioso ou não, congregavam indivíduos que partilhavam a mesma profissão ou a mesma devoção religiosa, instituindo entre si o compromisso de ajuda e defesa mútuas.
Merece destaque, pela influência que teve, o ensaio Sobre a Amizade, de Michel de Montaigne, publicado no final do século XVI. Nesta obra, reflete-se sobre a natureza da amizade, sendo percecionada como algo imprescindível para a felicidade do ser humano. A amizade, resultado de uma opção consciente, caracteriza-se por estar baseada na confiança, na honestidade e na lealdade. A amizade é uma forma de fraternidade porque os amigos ajudam-se tal como se fossem irmãos, o que pressupõe a solidariedade e o apoio recíprocos. Trata-se, tal como já vem desde o antigo mundo grego, de um tipo de relação entre indivíduos similar à dos irmãos de sangue. A influência do pensamento de Montaigne fez com que se desejasse tornar possível um tipo de relação entre os cidadãos baseado na integração das suas vontades individuais, no conhecimento autêntico entre si e na manifestação das distintas opiniões. Começa-se a caminhar para uma visão política da sociedade, ao estilo das guildas, onde a vontade comum pudesse vir a tornar-se a matriz da sociedade.
Chegado ao Iluminismo (filosofia das Luzes) e à Revolução Francesa, a fraternidade vê aprofundada a sua compreensão, bem como a sua plena inscrição no âmbito político. Em certa medida, os conceitos de liberdade e de igualdade opõem-se entre si. Quando a liberdade ganha primazia numa sociedade, a igualde é desfavorecida. O mesmo se passa no sentido inverso: quando se procura concretizar a igualdade entre todos, a liberdade fica limita. A superação desta dificuldade foi procurada através da fraternidade, visando a igualde de direitos. Uma vez que a fraternidade promove relações de solidariedade e cooperação, no respeito pelas diferenças, os ordenamentos jurídicos têm o suporte necessário para promover a igualdade jurídica. A igualdade política é protegida pelo corpo legislativo que reconhece e defende a autonomia de cada sujeito. Por fim, a igualde de todos os cidadãos em direitos e deveres promove a igualdade social, que mais não é do que o direito em que cada cidadão vê reconhecida a possibilidade de se autorrealizar livremente.
Mas convém não esquecer que a Revolução Francesa, que consignou os princípios da liberdade, da igualdade e da fraternidade, só muito mais tarde viu consignada na lei fundamental a terceira palavra da sua tríade. Só na Constituição produzida após a Revolução de 1848 é que a fraternidade ganha letra de lei. Aí se escreve, no VIII e último ponto do Prólogo, que “A República deve proteger o cidadão na sua pessoa, na sua família, na sua religião, nos seus bens, no seu trabalho e disponibilizar a todos a educação que é indispensável a todos os homens; deve, através da assistência fraterna, assegurar a existência dos cidadãos necessitados, quer fornecendo-lhes trabalho dentro dos limites dos seus recursos, quer dando, na ausência da família, assistência àqueles que não podem trabalhar”.
A partir daqui, a fraternidade torna-se um tema político e cultural que encontra em muitos Estados um lugar favorável para a sua concretização. Até que, cem anos mais tarde (1948), a Declaração Universal dos Direitos Humanos, no seu primeiro artigo, preconiza que “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade”. Para se ver o impacto que esta Declaração teve, recorde-se que foi aprovada em 1948 pela totalidade dos Estados-Membros da Organização das Nações Unidas, o que fez com que se viesse a tornar o texto de referência em quase todo o mundo para reconhecer a dignidade de todos os membros da família humana e o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo, como está bem patenteado no Preâmbulo.
Para concluir, apesar de a fraternidade estar inscrita nos principais documentos que norteiam a humanidade e ser um tema que não tem oposição na opinião pública, o certo é que ela continua a ser sistematicamente adiada. A isso não será alheio o facto de a fraternidade, para além dos textos legislativos, precisar também de ser reconhecida e aceite como imprescindível para o progresso dos povos, razão pela qual são precisos também líderes que coloquem em destaque o valor da fraternidade, como seja o caso de Ahmad Al-Tayyeb, Martin Luther King, Desmond Tutu, Mahatma Gandhi ou Jorge Bergoglio, só para dar alguns exemplos. Estes líderes conseguiram demonstrar que é possível um mundo melhor, mais habitável, e que este se pode conseguir através do diálogo social, como expressão de fraternidade.
Bibliografia
Impressa
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DI LISO, S. (2021). “Fraternità: Una categoria originale?”. Apulia Theologica, 7 (1), 49-73.
MORIN, E. (2019). La Fraternité, Pourquoi?. Paris: Actes Sud.
RATZINGER, J. (2021). La Fraternidad de los Cristianos. Trad. M. Hernández Blanco. Salamanca: Sígueme.
SÈRE, B. (2017). “L’amitié dans la pensée du millénaire médiéval: Tableaux d’une exposition”. Consecutio Rerum , 2 (3), 125-139.
TEPPA, S. (2012). “Fratello, fratellanza e ‘affratellamento’”. Historicά, 3, 273-285.
A consciência de cidadania global postula que hoje há situações nos causam inquietação e já não se podem “esconder debaixo do tapete”.
Quando o Papa Francisco se inspira em São Francisco de Assis e publica a Laudato Si’ recorda que «uma ecologia integral requer abertura para categorias que transcendem a linguagem das ciências exatas ou da biologia e nos põem em contacto com a essência do ser humano» (Laudato Si’ 11).
Pese embora, haja diversificadas abordagens do conceito de “cultura”, falar de cultura é fazer o esforço por ter presente o conjunto de conhecimentos, crenças, arte, valores e costumes através dos quais os humanos se desenvolveram e procurar superar os diversos limites que têm como pessoas e como sociedades. Este facto leva a que peça a cada cidadão um «esforço para que esses meios se traduzam num novo desenvolvimento cultural da humanidade, e não numa deterioração da sua riqueza mais profunda. A verdadeira sabedoria, fruto da reflexão, do diálogo e do encontro generoso entre as pessoas, não se adquire com uma mera acumulação de dados, que, numa espécie de poluição mental, acabam por saturar e confundir» (Laudato Si’ 47).
É neste contexto que a cultura pode ver com apreço o desenvolvimento científico, dado que é aí que se projetam desejos e aspirações, esperanças e temores, angústias e certezas. O facto de que a ciência é importante para o desenvolvimento das sociedades é atestado pela importância que os diversos estados dão a esta matéria e os resultados que se podem verificar, que se traduzem em desenvolvimento e prosperidade dos respetivos povos. O problema mais acutilante que se coloca é o conceito de “ciência” que se preconiza: se, num extremo, algo reducionista, entender a ciência apenas como abrangendo as “ciências duras”; ou, de modo mais equilibrado, entender ciência como o a abordagem sistemática, crítica e devidamente fundamentada daquilo que são as diversas manifestações do espírito humano. O “tipo” de ciência que se preconizar acabará por “gerar” comunidades de cidadãos com uma determinada visão cultural e, por isso, do mundo e de si, mais estreita ou mais ampla.
Ao introduzirmos o elemento “globalização” não se preconiza uma uniformização, à escala planetária, daquelas que são as concretizações culturais de um povo que, assim, seria hegemónico e acabaria por excluir todos os outros. É precisamente o contrário. Trata-se de conhecer, valorizar e enriquecer cada cultura em concreto, com aquilo que outras culturas possam aportar, dentro das liberdades individuais de cada povo ou indivíduo.
E, também aqui, a educação desempenha um papel fundamental: ao ter como objetivo o pleno desenvolvimento da pessoa humana e o reforço do respeito dos direitos do homem e das liberdades fundamentais. A educação deve favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e entre todos os grupos raciais ou religiosos, bem como o desenvolvimento dos povos para a manutenção da paz, como reconhecia já o Padre Manuel Antunes, SJ.
Deste modo advém como possível poder acreditar que a “casa comum”, refletida na Laudato Si’ e almejada pela Agenda 2030 da ONU, incrementam um caminho em que cada vez mais se vê crescer a sensibilidade relativamente ao meio ambiente e ao cuidado da natureza, e cresce uma sincera e sentida preocupação pelo que está a acontecer ao nosso planeta. A consciência de cidadania global postula que hoje há situações nos causam inquietação e já não se podem “esconder debaixo do tapete”. A ciência já não vida apenas recolher informações ou satisfazer a nossa curiosidade, «mas tomar dolorosa consciência, ousar transformar em sofrimento pessoal aquilo que acontece ao mundo e, assim, reconhecer a contribuição que cada um lhe pode dar» (Laudato Si’ 19).
Preconizar um modelo assistencial que tenha espiritualidade cristã um dos seus pontos fortes permite pensar o ser humano sem estreiteza de horizontes. Mais, a assunção de uma antropologia não encerrada apena na e pela razão positiva abre a possibilidade de a pessoa ser mais — é também aquilo que acolhe —, e de dar mais do que tem — dá aquilo que recebeu e incorporou na sua existência, lhe deu sentido.
Luís M. Figueiredo Rodrigues
É relativamente recente a abordagem do problema do sentido como uma questão separada. A normalidade era considerar que a referência sobre o ser implicava, necessariamente, a referência ao sentido. Na metafísica clássica, o que se considerava ser era o que por sua vez possuía sentido, de tal modo que o ser e sentido deste equivaliam aproximadamente à mesma coisa.
Atualmente, a questão do sentido une todas as pessoas; é a profunda inquietação sobre o sentido da vida, em que toda a Humanidade está unida. A interrogação sobre a condição humana revela o ser humano como uma interrogação para si mesmo.
Perante o sofrimento, de que a morte é o maior expoente, e o problema do antes e do depois, não se pode deixar de colocar a questão do sentido. E quando a sede de sentido se agudiza, pode chegar-se ao desespero, ao suicídio como expressão máxima da falta de saúde, de ausência de sanação.
A postura que defendemos reconhece o ser-humano como sedento de absoluto, que não se realiza apenas nesta vida, sem, contudo, negar a possibilidade de se realizar. Perante a morte, a radicalidade do problema humano faz emergir na consciência a aspiração que o habita: realizar-se infinitamente. «Queria era sentir-me ligado a um destino extrabiológico, a uma vida que não acabasse com a última pancada do coração», escreve Miguel Torga.
A partir da morte pode reconhecer-se, também, a impotência dos seres-humanos para construírem sozinhos a sua realização: «O homem é um animal compartilhante. Necessita de sentir as pancadas do coração sincronizadas com as doutros corações, mesmo que sejam corações oceânicos, insensíveis a mágoas de gente. Embora oco de sentido, o rufar dos tambores ajuda a caminhar. Era um parceiro de vida que eu precisava agora, oco tambor que fosse, com o qual acertasse o passo da inquietação» (Miguel Torga). É aqui se abrem duas hipóteses: ou se reconhece que a vida terrena — projeto e aspiração a ser mais — tem sentido e abre a possibilidade da esperança de um futuro transcendente; ou aceita que a vida não tem sentido e é o desespero total.
A descoberta do sentido para a vida, integrando o sentido do sofrimento, revela a precariedade e a finitude de uma vida sobre a qual assenta o desejo de absoluto que se espera. É a descoberta da liberdade ansiada, aquela que se tem devido a uma liberdade transcendente. O desejo de liberdade infinita dá lugar à descoberta da condição de possibilidade da liberdade humana: Deus. A realização humana surge a partir do ser pessoa, da relação.
Mas o sentido é um dom, oferecido pelo mistério do Verbo encarnado. O mistério trinitário é o “mistério iluminador” do sentido. A expressão desse mistério faz-se pela vivência da comunhão, onde o ser «não sem os outros» (Michael de Certaux) impele para a solidariedade e para o diálogo. Miguel Torga, continuamos com ele, escreve que «a Bíblia, o livro dos livros, nos ensina que não há homem sem homem, e que o próprio Cristo teve, a caminho do Calvário, a fortuna dum cireneu para o aliviar do peso da cruz (a dor incurável da solidão). Para mim, pelo menos, feito dum barro tão frágil e vulnerável, que necessito de ser amado durante a vida e acalentar a esperança de continuar a sê-lo depois da morte».
O evento Jesus Cristo é o mediador do sentido, o único intérprete autêntico do ser-humano.
Preconizar um modelo assistencial que tenha espiritualidade cristã um dos seus pontos fortes permite pensar o ser humano sem estreiteza de horizontes. Mais, a assunção de uma antropologia não encerrada apena na e pela razão positiva abre a possibilidade de a pessoa ser mais — é também aquilo que acolhe —, e de dar mais do que tem — dá aquilo que recebeu e incorporou na sua existência, lhe deu sentido.
A sanação, como conceito teológico basilar para compreender a missão da Hospitalidade, não só permite, como obriga, a que exista uma prática antropológica equilibrada, digamos sanada, para que a hospitalidade seja sanante, para curadores e curados!
O crente sabe-se e sabe o mundo como crente quando se aceita e aceita o mundo como originados e não como origem e fim em si mesmos, por isso o saber do crente é um saber de esperança
Nos tempos que correm, fortemente influenciados pela modernidade já superada, as tradições são postas em causa, pois crê-se que com o progresso científico-técnico o ser humano, recorrendo apenas à razão, pode encontrar em si, e de forma autónoma, a totalidade das suas motivações e, por isso, todo o conhecimento. Mas isto, que é um preconceito contra a tradição, redunda na negação daquilo que quer afirmar: não há lugar à verdade, mas sim à ideologia, com a consequente perda de liberdade e a desumanização.
O saber em si não é o que acontece primeiro, nem o fundamento último de tudo, pois o saber da possibilidade de saber, que o mundo existe e habitamos nele, que a linguagem me permite interagir no e com o mundo e falar a outros deste mundo, não se sabe nem se demonstra, antes crê-se. O que implica que, antes de qualquer operação de interação e conhecimento, o ser humano recebe uma linguagem, sobretudo da sua cultura e do seu contexto, que lhe oferece uma estrutura possibilitadora de tudo o demais. O «pensar» absolutamente subjetivo, sem recurso a nada exterior, não é possível.
Wittgenstein refere o «leito da fé» para significar tudo o que precede o indivíduo e que o sujeito terá de acolher, como condição de possibilidade da sua mesma subjetividade. Ou seja, em termos epistemológicos, o crer antecede o saber e o fazer. A confiança pessoal e a linguagem cultural são, então, a condição imprescindível para que o ser humano seja o que é, tenha um sentido e um percurso vital. Claro que somos livres: podemos rejeitar, transformar, assimilar e transmitir criativamente o que recebemos, mas só se primeiro acolhermos. A dinâmica da construção da identidade própria implica todas as dimensões do ser humano, onde a dimensão crente — que acolhe o dom oferecido — é a mais ampla, originária e fundamental.
A transmissão de verdades mais não é que o reconhecimento de que o ser humano é um ser da tradição, sendo esta constitutiva da cultura humana, na medida em que acolhe, transmite, destrói e cria tradições, ou melhor, reorganiza e faz evoluir a tradição. As verdadeiras tradições assumem um processo libertador e orientador, já que diante de uma multidão de possibilidades de perceber, pensar e agir que pode paralisar o homem, coloca-lhe à disposição determinados modelos ou guiding patterns de perceber, pensar e agir, bem como um ambiente comunitário gerador de instâncias de controle e garantes da tradição normativa, num determinado contexto cultural. Este processo é evolutivo porque constituído, em simultâneo, pelos transmissores e pelos recetores que, posteriormente, se assumem também como transmissores.
Este processo afeta a personalidade, pois o facto de um indivíduo estar numa determinada comunidade fundada na tradição, e de esta o influenciar, significa duas coisas: que a tradição possibilita o desenvolvimento da individualidade e que pode também atrofiar o desenvolvimento livre. A tradição, como destino e desafio, postula a assimilação livre e inteligente da tradição, com a consequente atitude crítica, pois a assimilação pessoal é sempre interpretação. Esta resulta da interação daquilo que é transmitido, ou ensinado, com as experiências pessoais, o que sintetiza a possibilidade de continuidade da transmissão e a sua inovação. Razão pela qual há sempre latente uma certa conflitualidade nestes processos.
É neste contexto que considera a transcendência na reflexão sobre o conceito de “casa comum” nos liberta e faz com que cada cultura particular seja criadora e libertadora de todo o sentido. A possibilidade de sermos interpelados de forma absoluta, com a constituição de uma certeza fundamental, ou uma base sobre a qual se possa construir todas as outras dimensões, é posta de parte pela maioria dos pensadores da pós-modernidade. É certo que a transcendência, porque transcende, só pode ser apreendida por cada pessoa no aqui e agora da sua história, por isso limitado e incompleto. Mas é parte integrante do acreditar a aceitação dessa finitude, que nos determina como seres de acolhimento e não como donos e senhores da realidade. O crer inaugura uma dimensão excessiva em relação à produção de sentido. Na dinâmica do crer, o sentido, mais do que produzido, é acolhido.
Na sua aceção mais genérica, crente é todo aquele que reconhece, contempla, espanta-se e aceita este estatuto de «ser mistério». Aceita que o dom originário, embora compreendido e aceite no seu âmago e nas suas consequências, nunca será totalmente captado e dominado pelos saberes humanos: apenas poderá ser acolhido como algo imerecido e, ao mesmo tempo, excessivo em relação a tudo o que sabe e faz. O ser humano crente é o que sabe como crente, sabe o mundo e o sentido de forma crente, por isso age como crente. O crente sabe-se e sabe o mundo como crente quando se aceita e aceita o mundo como originados e não como origem e fim em si mesmos, por isso o saber do crente é um saber de esperança. E porque se descobre e acolhe como dom gratuito, dá-se aos demais de forma gratuita, com fundamento fora de si — no Outro — pelo que o saber crente gera a ação caritativa, promotora da Casa Comum.
O cuidado da natureza faz parte de um estilo de vida que implica uma capacidade de viver em conjunto e de comunhão, onde se reconhece que precisamos uns dos outros, que temos uma responsabilidade para com os outros e o mundo, que vale a pena ser bons e honestos.
Afigura-se como cada vez mais incontornável o papel que a religião ocupa na perceção que os indivíduos e as comunidades humanas têm da realidade, configurando o seu modo de ser e estar no mundo. Por esta razão, e até ao revés do que se poderia pensar, os ensinamentos dos líderes religiosos sobre o cuidado da casa comum têm, tendencialmente, uma efetiva influência junto das suas comunidades. Exemplo paradigmático é a intervenção do Papa Francisco que, com a publicação da Encíclica Laudato si’, sobre o cuidado da casa comum, colocou a questão ecológica no centro dos discursos e das preocupações eclesiais.
Naquela Encíclica, a questão ecológica é percebida de uma forma ampla, adotando uma abordagem que considera a complexidade do real. Afirma-se que «tudo está intimamente relacionado e que os problemas atuais requerem um olhar que tenha em conta todos os aspetos da crise mundial» (Laudato Si’, 137); a questão ecológica deixa de ser considerada apenas como a preservação dos ambientes e recursos naturais, para incluir com igual valor as dimensões humanas e sociais.
É neste contexto que a espiritualidade cristã pode oferecer um contributo significativo, propondo «uma forma alternativa de entender a qualidade de vida, encorajando um estilo de vida profético e contemplativo, capaz de gerar profunda alegria sem estar obcecado pelo consumo» (Laudato Si’, 222). Esta conceção recomenda uma atenção especial à arte de cuidar, que insere o indivíduo no território do personalismo solidário. Dentro da tradição social-cristã, preconiza os princípios sociais da solidariedade, subsidiariedade e bem-comum; bem como os seus grandes valores da verdade, justiça, igualdade, liberdade e participação. Esta orientação dada pela espiritualidade cristã acaba por qualificar toda a ação social.
Ao pensar a “casa comum” a partir desta perspetiva, torna-se natural perceber a “questão ecológica” não apenas associada ao cuidado da natureza — uma ecologia verde —, mas também numa ecologia integral. A partir daí, vê-se a necessidade de velar e respeitar qualquer forma de vida, mas também todos os modelos de vida humana, criando condições económicas e sociais adequadas para que todos os indivíduos, independentemente de qualquer outro atributo, possam ter as condições para viver dignamente. Por isso, a questão social não está alheia à questão ecológica, antes é parte integrante da mesma. Aliás, verifica-se que as mentalidades que originam práticas destruidoras da natureza, acabam também por originar dinâmicas que desrespeitam e agridem os humanos que coabitam nesse espaço. A exploração e o desprezo da natureza nunca estão separados da injustiça e da violência nas relações humanas. De um modo concreto, «o ambiente humano e o ambiente natural degradam-se em conjunto; e não podemos enfrentar adequadamente a degradação ambiental, se não prestarmos atenção às causas que têm a ver com a degradação humana e social» (Laudato Si’, 48).
Verificado que está a existência de uma certa interligação entra a ecologia natural e a ecologia humana, percebemos que um ambiente humano pouco saudável e desequilibrado – em que as relações se caracterizam pelo encerramento em si mesmo, pela assimetria, pela subjugação e pela manipulação – contribui para poluir a ecologia das relações humanas e até para distorcer as relações com o meio ambiente. Pelo contrário, um ambiente livre e aberto – que permita uma circulação alargada de sentido, que atraia a atenção para o outro e diferente, que promova a compreensão e não o conflito, o diálogo em vez do isolamento e o confronto – promove relações sociais e ambientais mais equilibradas e produtivas.
Esta ligação destaca-se ainda mais claramente quando Francisco chama a atenção para o «grande desafio cultural, espiritual e educativo que implicará longos processos de regeneração» (Laudato si’, 202), onde o tema da educação ambiental e ética ecológica está enquadrado no conceito mais geral de “cuidado” e responsabilidade para com a natureza e os humanos. O cuidado da natureza faz parte de um estilo de vida que implica uma capacidade de viver em conjunto e de comunhão, onde se reconhece que precisamos uns dos outros, que temos uma responsabilidade para com os outros e o mundo, que vale a pena ser bons e honestos. O amor, cheio de pequenos gestos de cuidado mútuo, é também civil e político, manifestando-se em todas as ações que procuram construir um mundo melhor. Neste contexto, juntamente com a importância dos pequenos gestos diários, a caridade social impele-nos a pensar em grandes estratégias que detenham eficazmente a degradação ambiental e incentivem uma cultura do cuidado que perpasse toda a sociedade (Laudato si’, 231).
Ao entender o mundo como um sistema interligado, verifica-se que há dinâmicas de agressão, mas também de simbiose e cooperação, imprescindíveis para o desenvolvimento das espécies e da vida, seja ela de que reino for. Optar por dinâmicas de agressão e exclusão leva a caminhos de desumanização e aniquilamento. A fraternidade surge como o “antídoto” que permitirá o mundo globalizado sobreviver à barbárie.
A Laudato Si’ diz-nos que o «amor fraterno só pode ser gratuito, nunca pode ser uma paga a outrem pelo que realizou, nem um adiantamento pelo que esperamos venha a fazer. Por isso, é possível amar os inimigos» (§ 228), o que nos leva a olhar com outro interesso ao livrinho La fraternité, pourquoi? (2019), onde Edgar Morin contrapõe ao modo darwuinista de compreender a sociedade uma proposta baseada na ajuda-mútua e na cooperação. A obra A origem das espécies através da seleção natural, ou a Preservação das raças favorecidas na luta pela vida (1859), fez com que o nome de Charles Darwin estivesse associado a uma certa compreensão da evolução das sociedades, de um modo tal que a teoria da seleção natural justificou a competição entre os indivíduos e as diversas estratégias que levam a que só sobrevivam os mais aptos. Esta “seleção natural” levaria a um aperfeiçoamento e, consequentemente, a um progresso qualitativo. Contudo, Morin, apoiando-se no pensamento de Pierre Kropotkine, sobretudo na obra O apoio mútuo: um fator de evolução (1902), argumenta que a vida, mais do que na competição, apoia-se na cooperação. Cada uma das espécies, ao desenvolver-se no âmbito de um ecossistema concreto, evidencia que as que melhor se adaptam não são as mais agressivas, mas sim as mais solidárias. Em cada ecossistema há predadores e agressores, que competem com o meio, mas também há a interação positiva, a simbiose e a cooperação, imprescindíveis para o desenvolvimento das espécies e da vida, seja ela de que reino for. Veja-se, a título de exemplo, a importância da polinização, onde a cooperação entre os insetos e os vegetais é imprescindível para a sobrevivência de todos. Edgar Morin conclui que é a resistência à crueldade de tudo o que predatório e ameaçador para a vida que suscita as práticas de entreajuda e complementaridade, capazes de criar amplos espaços de solidariedade, imprescindíveis para que haja vida. Esta evidencia a necessidade, sempre, de relação com outros, seja através de relações parasitárias ou predatórias, seja através de associações ou simbioses. Em síntese, a existência da vida acarreta sempre o conflito e a cooperação.
A partir deste enquadramento, percebe-se melhor que face aos perigos comuns, de âmbito global ¬— sejam eles ecológicos, económicos, bélicos ou outros ¬— Edgar Morin preconize a necessidade imperiosa de uma fraternidade humana que salvaguarde a nossa comunidade humana de destino. O conceito de “fraternidade” aglutina estas problemáticas de uma forma única: como uma espécie de autoajuda, cooperação ou comunidade; e como um vínculo de âmbito familiar, laboral ou político. Diante do inimigo, da miséria humana ou da solidão, talvez a fraternidade se denomine mais através do sinónimo “solidariedade”. Já diante do estrangeiro, do estranho ou daquele que é diferente, por qualquer motivo, se denomine como “hospitalidade”. O fulcral é que a fraternidade se caracteriza pela impossibilidade se ser imposta por aqueles que detêm a autoridade, é preciso que surja de cada sujeito, dado que a fraternidade se caracteriza pela relação afetiva e afetuosa interpessoal.
Mas falar de fraternidade pode levar a que se foque a atenção apenas no sujeito individual e naqueles que lhe são fisicamente próximos. Mas vive-se hoje o mundo globalizado! A globalização, como fenómeno, foi entendida como um processo de interconexão social, extensível a todo o globo. A interconexão à escala global — e de acordo com as diferentes épocas da história e latitudes — permitiu a troca de significados culturais entre as diversas sociedades, por um lado, e a universalização de alguns conceitos e ideias, por outro. Por isso, a globalização percebe-se como uma prática subjetiva, que interliga o todo global.
Assim sendo, a globalização pode ser simplesmente o nome dado a uma matriz de processos que alargam as relações sociais através do espaço mundial, mas a forma como as pessoas vivem essas relações é bastante complexa, mutável e difícil de delinear. A pertinência de uma abordagem “global” para a compreensão do mundo reside no facto de ser necessária uma atenção aos fenómenos culturais da globalização, para compreender os acontecimentos particulares à luz da globalização, mas também o inverso. Há muitos fenómenos que, sendo agora globais, nasceram num contexto social concreto. E é neste contexto que se torna mais imperioso «revigorar a consciência de que somos uma única família humana. Não há fronteiras nem barreiras políticas ou sociais que permitam isolar-nos e, por isso mesmo, também não há espaço para a globalização da indiferença» (§ 52)
A paisagem humana é constantemente afetada pelos artefactos tecnológicos que dão suporte às suas demandas civilizacionais. Se as ferramentas são resultado da busca de soluções para tarefas específicas, não é menos verdade que a concretização obtida influencia, de alguma maneira, os seus utilizadores[1]. Referimo-nos às ferramentas e não aos meros instrumentos. A função destes esgota-se na utilização imediata, ao passo que a daquelas existe antes e perdura depois da sua utilização, o que faz com que, mesmo a mais rudimentar, seja mnemotécnica[2]. Ao arquivar em si memórias das competências daqueles que a elaboraram vai permitir que sobre esta se vai elhorando a proficiência, através das utilizações sucessivas. O armazenamento de memórias nas ferramentas vai permitir recuperar a informação nas gerações posteriores e, por isso, influenciá-las. Os desenvolvimentos tecnológicos acabam, de uma ou de outra forma, por ter consequências sociais e culturais[3]. De algum modo, a utilização de uma ferramenta conduz o utilizador pelo caminho evolutivo que a fez chegar até aí, embora nem sempre isso seja consciente. A este dado acresce o facto de que na cidade informacional a relação entre sujeitos se faz através de ferramentas digitais, da técnica, que é a ação sobre as coisas, e não apenas da práxis, que é a ação de um sujeito com outro sujeito[4].
O informacionalismo é o paradigma tecnológico que constitui a base material das sociedades do início deste século, sucedendo, assim, ao paradigma industrial precedente[5]. É um paradigma tecnológico que constitui a base das descobertas compreensivas da sociedade contemporânea. Sucede e está ainda a conviver com o paradigma industrial que, progressivamente, vai substituindo, e do qual herda recursos[6]. O novo paradigma do informacionalismo pode ser facilmente compreendido se o compararmos com o industrial. Aqui, a energia é o recurso primário e as tecnologias agrupam-se em torno deste recurso. É um paradigma caracterizado pela organização sistemática das tecnologias, com base na competência para gerar e distribuir energia. O informacional, por seu turno, é um paradigma baseado no aumento da capacidade de processar informação. O novo paradigma não existe por si só, precisa do anterior, desde logo pelos recursos materiais que este aporta e que lhe são imprescindíveis. Mas, «sendo a informação e a comunicação as dimensões mais fundamentais da atividade e organizações humanas, uma mudança revolucionária nas condições materiais do seu desempenho afeta todos os âmbitos da atividade humana»[7]. Na cidade informacional, a capacidade que qualquer sujeito tem de atuar sobre a rede de comunicações permite-lhe, a ele e às organizações, reconfigurar a rede em função das suas necessidades e projetos[8]. Mas convém ter bem presente que esta possibilidade depende muito do modelo de poder que existir na configuração da rede. Nesta nova sociedade, a da informação, — com o consequente processo de formação, pesquisa e produção — o sucesso depende sobretudo da capacidade de gerar conhecimento e processar essa informação de modo eficiente. O sucesso está naqueles que saibam o que procurar na Internet e o que fazer com o que encontram em função das tarefas e projetos a que se destina a informação.
A transição do paradigma industrial para o informacional, como nas épocas anteriores, é lenta e nada homogénea. Mas o que resulta evidente é que a sociedade informacional, através das redes que promove, está a moldar a sociedade. As pessoas plenamente integradas nessa sociedade constituem uma minoria da população do planeta. Contudo, se as plenamente integradas são poucas, a influência do que acontece nas diversas redes, que configuram a sociedade em rede, afeta toda a população. A sociedade em rede é a estrutura dominante do planeta que, progressivamente, vai tendo repercussão sobre o modo como se está fora do ciberespaço[9].
A cidade informacional assume um conjunto de valores e de crenças específicos que motivam o comportamento dos cidadãos. Ao ter como suporte as tecnologias digitais, que propiciam a sociedade em rede, é natural que estas alterações afetem a cultura. Como «resultado da convergência da evolução histórica e da mudança tecnológica, entramos num modelo genuinamente cultural de interação e organização social»[10]. Tem, por isso, uma cultura própria[11]. Contudo, a sociedade em rede não é uniforme em todo o território, antes se desenvolve em diferentes contextos territoriais e culturais. O núcleo comum daquilo que se chama cultura da sociedade em rede é que «existe globalmente num tempo real; é global na sua estrutura. Por isso, não só alastra a sua lógica a todo o mundo, mas mantém a sua organização em rede no âmbito global, ao mesmo tempo que desenvolve a especificidade de cada sociedade»[12], pelo que a cultura digital, mais do que a uniformização cultural, procura promover a partilha e o diálogo entre as diferentes culturas. Não pretende ser uma cultura universal que se impõe, antes promover a interação cultural entre culturas, mesmo as minoritárias, que fora da cidade informacional não teriam a capacidade de expressão que hoje possuem. Por isso, «os protocolos de comunicação entre as diferentes culturas são a pedra angular da sociedade rede, já que sem eles não existe a dita sociedade, mas apenas redes dominantes e comunas de resistência»[13].
A cultura digital apoia-se, então, não tanto nos conteúdos, mas nos processos de partilha que possibilita. A partilha acaba por ser o fenómeno mais apreciado, não a partilha dos mesmos valores, mas do valor da partilha em si mesmo. A base desta cultura não são os conteúdos, mas sim os processos de interação. E a partilha de significados culturais diferentes pode não só coexistir, como ser agora potenciada. Graças ao poder dos símbolos, mediados pela integração dos diversos média, todas as realidades são comunicáveis. A realidade é captada e imersa numa composição de objetos digitais que não apenas representam o real, mas são capazes de o criar e recriar, pala além dos ecrãs, transformando-se em experiência[14].
Com o recurso às novas tecnologias, a informação é desmaterializada, dando origem à possibilidade de virtualização. O virtual não só não é oposto ao real, como é uma dimensão muito importante da realidade, porque o virtual é aquilo que existe, não em ato, mas em potência. O oposto do virtual é o atual, pois «o virtual tende a atualizar-se, embora não se concretize de um modo efetivo e formal»[15]. A esta dupla convém acrescentar um outro conceito: o possível. O possível está todo constituído, só ainda não está realizado. E realiza-se sem que nada o mude ou afete, pelo que o possível é exatamente como o real, só lhe falta existência. Não há nenhum processo de criação, porque não há nenhuma inovação.
Quando o virtual gera experiência vivida dá-se a atualização, que é a solução de um problema, mas que não estava anteriormente contida, como no caso do possível; é uma criação que surge através da configuração dinâmica de forças e finalidades proporcionadas pelo virtual. A atualização cria algo de novo, que não estava antes predefinido, porque nasce do diálogo entre o virtual e uma determinada configuração espácio-temporal onde se realiza a atualização.
A cultura digital assume, ainda, uma ética hacker[16] — sem conotações negativas — que se baseia no prazer de partilhar e do uso imediato da criação. Centra-se na fruição da inovação partilhada, que acaba por ser a sua gratificação, o ganho procurado. O trabalho centra-se sobretudo em projetos, mais do que em tarefas específicas ou no horário de serviço. Este dado reveste-se tanto mais de importância quanto mais se toma consciência de que a cultura digital, a da Internet, é a cultura dos seus criadores[17]. Pode distinguir-se, então, entre consumidores/utilizadores, que são os que utilizam os recursos presentes na Web, e os produtores/utilizadores, que são quem alimenta o sistema tecnológico[18] e que, por isso, configuram a paisagem cultural da cidade informacional, baseando-se na tecnomeritocracia[19].
Se no paradigma industrial o valor económico é aquele que mais movimenta os cidadãos, no informacional os produtores/utilizadores movem-se sobretudo pela reputação, que constitui o elemento essencial para aferir da possibilidade de pertencer à comunidade, assim como para estabelecer uma hierarquização entre os membros[20].
Os novos média e a cultura que eles originam, a digital, não podem ser vistos apenas como mais um recurso, talvez até muito eficaz, para difundir mensagens religiosas e, com isso, facilitar a evangelização. São muito mais do que isso, são um ambiente, um contexto e uma cultura próprios que lançam novos desafios à pastoral[21].
Se, até aqui, as mudanças comunicacionais se focavam na quantidade e na velocidade, até se poder falar em mass-media, onde um emissor envia informações em massa para a universalidade dos recetores e que tem o seu último estádio evolutivo na Web 1.0, das páginas estáticas na Internet. Na geração seguinte, cada recetor é também um emissor, o poder e o controle estão distribuídos. Deixa de haver um grupo reduzido de emissores que enviam muita informação para todos os recetores, disputando a atenção destes, para passar a haver uma imensidão de comunicações e partilhas, de todos para todos, numa pluralidade de direções, dando origem ao cross-media. Estamos na Web 2.0, das redes sociais digitais, que será tanto mais bem-sucedida quanto mais as ferramentas digitais permitirem usufruir dos recursos presentes na Internet. Por seu turno, a Web 3.0, que discretamente se está a desenvolver, afirmar-se-á na medida em que for mais semântica, permitindo, através da interligação de significados, que a máquina e o ser humano trabalhem em cooperação, desde que cada indivíduo partilhe a informação que ele considera importante e, por isso, a agregue ao seu perfil, dando visibilidade estável à sua identidade digital[22]. Daqui a importância do reconhecimento de protocolos comunicacionais[23], coerentes com o estilo cristão.
A atenção pastoral não pode estar alheia a esta nova realidade, porque nada do que é humano é estranho às preocupações da comunidade eclesial (cf. GS 1), que além do mais está consciente da mudança cultural que se está a operar e para a qual os pronunciamentos do magistério eclesial têm vindo a alertar[24]. Desde logo, assumindo que não basta a transmissão de informações — muito própria dos processos educativos de suporte digital, cada vez mais em voga —, mas importa cultivar uma atitude que promova a aquisição de um conhecimento de fisionomia sapiencial. Também aqui, a ritualidade em geral[25], e a liturgia cristã em particular, são descobertas como únicas e essenciais, porque mais que transmitir informações, importa ser capaz de fazer memória. A comunidade eclesial redescobre que a sua ação só tem força na medida em que as suas ações e palavras manifestam a ação de Deus e permitem uma experiência de fé. Por isso, não há ação pastoral sem uma estreita ligação com toda a ação litúrgica e sacramental da Igreja. Aqui, e de forma mais densa na eucaristia, está contido todo o mistério da fé. Aquela «é memorial, é banquete, é sacrifício, é oferenda; é aliança e é louvor; é recordação de um passado definitivamente consumado, situado no tempo e no espaço, é presença única que assume o homem integrando-o no ato transcendental do Senhor e não é menos esperança em relação ao futuro, nostalgia do que há de vir»[26]. Mas o «fazer memória» não é voltar-se para o passado: é um tornar presente que, justamente, diz no hoje o sentido desse passado. Na medida em que «faz memória», confessa que o passado não é simplesmente passado, morto. Um «fazer memória» é sempre um gesto presente que cristaliza uma existência, pessoal e comunitariamente, onde as coordenadas escapam ao desenrolar linear da simples temporalidade[27].
Esta constatação abre passo para outro desafio pastoral, que postula que não se fique por meros contactos ocasionais nas redes sociais digitais, mas que se cultivem autênticas relações de amizade que, necessariamente, cheguem ao toque físico no seio de uma comunidade eclesial. Este desafio convida as comunidades a valorizarem cada vez mais a sua atitude de acolhimento, de escuta e abertura ao que é diferente. A autêntica cultura do encontro implica uma maior reflexão, capaz de distinguir e valorizar corretamente as dimensões virtual e atual das relações, e a sua necessária complementaridade. Este dado deve-se ao facto de que a comunhão, entendida em sentido teológico, não se consegue apenas com relações virtuais. Antes, lança o desafio espiritual que tem no binómio palavra e silêncio o critério aferidor da qualidade de uma presença digital que sirva a diaconia do sentido. A amizade é, então, a expressão da relação com a Trindade e do testemunho cristão, quer dos participantes individuais, quer das comunidades, num permanente exercício de abertura de portas, sobretudo às periferias existenciais.
A análise das práticas realizadas na Web evidencia, por vezes de modo quase exclusivo, que o tornar-se cristão pressupõe um encontro pessoal, entre a fé que é dom, mas também acolhimento livre. Estamos diante da dimensão pessoal e individual da fé, que não pode esquecer que também é necessário um quadro referencial normativo da fé, exterior ao sujeito, porque «num contexto de pluralismos de subsistemas sociais, agravado pela confusão de referências e a referência do indivíduo por si mesmo, é necessário especificar os contornos da fé cristã como tal»[28]. Percebe-se a necessidade de uma norma veritativa da fé[29], não arbitrária, que a faça entender como um quadro de referências indispensável para escolhas no futuro, numa descontinuidade com a cultura circundante, embora sem deixar de ser uma fé vivida por indivíduos numa sociedade muito solitária[30], mas que recorrem às ferramentas digitais para se aproximar e procurar quem responda aos seus anseios, para dar corpo à sua busca de sentido. A fé tomará novas formas, manifestar-se-á de maneira distinta, mas a que for «praticada sobre o impacto da afirmação de intensa individualidade não será uma realidade diferente da fé cristã como tal. Esta fé será simplesmente a fé de sempre experimentada numa situação histórica particular»[31]. Mercê das caraterísticas da cultura digital, promove-se a experiência de fé subjetiva como a característica mais destacada, intensificando uma individualidade crente, em que a experiência de fé ganha destaque sobre o conteúdo da mesma. A práxis cristã nos novos ambientes digitais descobrirá novas formas de viver e compreender a fé, cabendo ao discernimento eclesial aferir da existência ou não de elementos estranhos à memória cristã[32].
No âmbito da cidade informacional, onde o imaterial parece ter um lugar de quase exclusividade, convém também não esquecer que de acordo com a tradição cristã não há salvação «sem carne e sem referência à incarnação do Verbo»[33], pelo que qualquer proposta pastoral terá, necessariamente, de contemplar sempre a experiência de fé feita na carne como prioritária. Este é o grande desafio.
[1] Cf. E. Graham, «Being, making and imagining: Towards a practical theology og technology», in Culture and Religion: An Interdisciplinary Journal 10 (2009) 221-236.
[2] Cf. R. Debray, Introduction à la médiologie, ed. Presses Universitaires de France, Paris 2000, 19-20.
[3] Cf. J. M. Duque, «Rality, Virtuality and Relation. Neognostic Utopias of the Post-Human in Cyberculture», in ET-Studies 7,1 (2016) 132-133.
[4] Cf. R. Debray, Transmettre, ed. Odile Jacob, Paris 1997, 185-186.
[5] Cf. M. Castells, A Era da Informação: Economia, Sociedade e Cultura. A Sociedade em Rede. Vol. I, ed. Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa 20073, 225-230.
[6] Cf. Idem, «Informacionalismo, redes y sociedade red: una propuesta teórica», in Idem (ed.), La sociedad red: una visión global, ed. Alianza Editorial, Madrid 2006, 33.
[10] M. Castells,, A Era da Informação: Economia, Sociedade e Cultura. A Sociedade em Rede. Vol. I, 615.
[11] Cf. A. Cloete, «Living in a digital culture: the need for theological reflection», in HTS Teologiese Studies/Theological Studies 71, 2 (2015) 2.
[12] M. Castells, «Informacionalismo, redes y sociedade red: una propuesta teórica», 68. Se, inicialmente, Manuel Castells fala em «sociedade em rede», o conceito evolui, depois, para «sociedade rede».
[14] Cf. P. Lévy, Cyberculture, Editions Odile Jacob, Paris 1997; Idem, Qué es lo virtual?, Ed. Paidós, Barcelona 1998.
[15] Idem, Qué es lo virtual?, Ed. Paidós, Barcelona 1998, 10.
[16] Cf. P. Himanen, «La ética hacker como cultura de la era de la información», in M. Castells, (ed.), La sociedad red: una visión global, 510-511.
[17] Cf. J. R. Fernández, Evangelizar en el planeta digital. Cómo hacer significativa nuestra presencia en Internet, Col. Pastoral 43, ed. PPC, Madrid 2013.
[18] Cf. M. Castells, A Galáxia Internet, ed. Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa 2007, 55.
[21] Os diversos desafios que a cultura digital oferece às religiões podem ser aglutinados em torno de cinco núcleos, a saber: a ritualização, a identidade, o sentido de comunidade, a autoridade e, por fim, a autenticidade (cf. H. Campbell (Ed.), Digital Religion. Understanding religious practice in new media worlds, ed. Routledgs, New York 2013; J. Mitchell, S. Marriage, Mediating Religion. Conversations in media, religion and culture, ed. T&T Clark, London/New York 2006).
[22] Cf. S. Williams, S. Fleming, P. Parslow, Pat, This Is Me, Learning materials about Digital Identity, Eduserv [http://centaur.reading.ac.uk/17356/1/Williams_2010_TiM_Careers.pdf (acedido a 30/05/2016)].
[23] Cf. A. Zem-Lopes et al, «Uma Revisão Sistemática das Tecnologias da Web Semântica em Ambientes Educacionais», in Anais dos Workshops do Congresso Brasileiro de Informática na Educação (2013)571-580.
[24] Cf. L. M. F. Rodrigues, «Proponer el Evangélio em uma cultura digital», in J. C. Carvajal Blanco, Á. Castaño Félix (Eds), Id y haced discípulos… (Mt 28,9). Al servicio de la fe, Ediciones Universidad San Dámaso, Madrid 2012, 199-222.
[25] Cf. G. Goethals, «Myth and Ritual in Cyberspace», in J. Mitchell, S. Marriage, Mediating Religion. Conversations in media, religion and culture, ed. T&T Clark, London/New York 2006, 257-269.
[26] O. Gonzales de Cardedal, «Prologo», in J. M. Sanches Caro; V. Martín Pindado, La gran oración eucarística. Textos de ayer y de hoy, ed. La Muralla, Madrid 1968, 15.
[27] Cf. P. Gisel, Croyance incarnée. Tradition – Écriture – Canon – Dogme, ed. Labor et Fides, Gèneve 1986, 44.
[28] D. Terra, Devenir Chrétien aujourd’hui. Un discernement avec Karl Rahner, ed. L’Harmattan, Paris 2006, 19.
[32] Cf. F. Sebastián Aguilar, La fe que nos salva. Aproximación pastoral a una Teología Fundamental, col. Lux Mundi 92, ed. Sígueme, Salamanca 2012, 253.
O objetivo desta obra é contribuir para pensar cientificamente o âmbito do saber denominado como “Ecologia dos Media”. Este campo parte do princípio de que «os humanos modelam os instrumentos de comunicação, mas estes também modelam o ser humano, sem que disso se tenha consciência» (Marshal McLuhan), pelo que o Editor se propõe contribuir para a consolidação deste saber específico.
Scolari, Carlos A. (Coordenador). (2015). Ecología de los médios. Entornos, evoluciones e interpretaciones. Gedisa. 297 pp. ISBN: 978-84-9784-826-8
Esta compreensão evidencia-se tanto mais urgente quanto se constata que a sociedade em rede, através dos media e da internet, produz transformações económicas, tecnológicas, sociais e culturais que abrangem todo o planeta, fenómenos esses denominados, genericamente, como globalização. A emergência deste fenómeno evidencia que o ecossistema mediático está a mudar, o que pede uma compreensão aturada do mesmo. A metáfora “ecologia mediática” oferece um conjunto de categorias e ideias que permitem compreender essas mudanças que o telégrafo, o comboio, em conjugação com a imprensa, e depois com a rádio, a televisão e a internet, contribuíram poderosamente para a expansão comercial e o processo da globalização.
O editor da obra, Carlos A. Scolari, inicia a obra com uma extensa Introdução onde apresenta o “estado da arte” da ecologia dos média, intitulado “Ecologia dos media: da metáfora à teoria (e mais longe)”. Começa por referir que uma teoria é um espaço de diálogo onde diferentes sujeitos mais ou menos competentes falam sobre um determinado tema (Scolari, 2015, p. 12). No que às teorias da comunicação diz respeito, Scolari propõe uma nova classificação, agrupando-as em torno de dois grupos: o das teorias especializadas, aquelas que se focam num determinado meio ou processo comunicativo; e as teorias generalistas. Estas propõem-se construir quadros globais de todos os processos que afetam o mundo da comunicação. É aqui que o autor insere o estudo da “Ecologia dos Meios”.
Scolari elabora uma reflexão diacrónica, que amplia a visão conceptual da matéria muito para além dos contributos de McLuhan, começando pelos contributos que prepararam o advento do conceito de “ecologia dos meios” e que denomina como “os precussores”, a saber: Lewis Munford, Jacques Ellul, Harold Innis e Eric Havelock. De seguida, reflete sobre o contributo de cada um dos “pais fundadores”: Marshal McLuhan, Neil Postman e Walgter Ong. Depois de acenar com o trabalho dos fundadores, o texto enuncia aqueles que se podem considerar os discípulos dos pais fundadores, e que continuam a reflexão sobre a ecologia dos media. São eles: Lance Strate, Joshua Meyrowitz, Robert K. Logan, Paul Levinson e Derrick de Kerckhove.
O aspeto que aborda a seguir é o da metáfora da “ecologia dos média”, começando por referir que uma metáfora é um dispositivo cognitivo básico da comunicação e da cultura humana. Desempenha um papel fundamental no discurso científico, já que muitos dos novos paradigmas ou modelos teóricos nasceram ou representam-se através de metáforas. Mas a utilização da metáfora ecológica aplicada aos meios de comunicação postula, pelo menos, duas interpretações: entender os média como ambientes e os média como espécies. Aquela entende a metáfora da ecologia dos media como a dimensão ambiental da ecologia mediática, na qual os media criam um ambiente que envolve o sujeito e modela a sua perceção e cognição; esta, por sua vez, assume uma dimensão medianeira da ecologia dos média, entendendo os meios de comunicação como espécies que partilham o mesmo ecossistema e estabelecem relações entre si.
Com a profunda alteração que a digitalização cultural está a introduzir na sociedade, criou-se uma nova oportunidade para uma releitura das grandes obras que consolidaram os conceitos de “ecologia dos media”, mas agora numa releitura da sub-espécie digital. Verifica-se que a profunda alteração dos novos modos de produzir, distribuir e consumir conhecimento, que a digitalização originou, produz uma alteração tão profunda na sociedade, que só tem paralelo com a invenção da imprensa, no século XVI. Com uma agravante, a revolução atual é mais rápida e mais generalizada. A releitura dos “clássicos” evidenciacia ter potencial propor temas, conceitos e perguntas que enriquecem a compreensão daquilo que são as comunicações digitais interativas.
Carlos Scolari reconhece, também, que a reflexão científica sobre os meios de comunicação social, recorrendo à metáfora da ecologia tem algumas lacunas. A priemira é que os seus fundadores — McLuhan e Postman — não legaram um conjunto de textos que seja um referencial teórico a partir do qual se possa elaborar uma epistemologia da disciplina. Esse trabalho está ainda a fazer-se. Faz falta a elaboração e um dicionário da disciplina, onde se reflitam os conceitos fundamentais e o diálogo possível com os vários atores do cenário cultural.
Por fim, sabemo-lo, não há uma disciplina bem delimitada se não tem um método próprio, específico. Neste momento existe uma dispersão de ferramentas metodológicas, que estão distribuídas por uma plêiade de estudos e investigações, mas que importava recolher catalogar e sistematizar. Com este processo vai permitir delimitar o campo deste saber específico, confirmando o que se adequa e excluindo o que não se insere na sua especificidade.
A seguir à extensa introdução, segue-se uma coletânea de textos, divididos em três secções: os pais fundadores, os discípulos e, por fim, as novas fronteiras. O critério que presidiu à escolha dos textos foi as suas contribuições para a reconstrução de um percurso teórico – o da ecologia da media – e deixando de lado outras questões, como seja o caso dos seus aspetos formais. Por esse motivo, alguns capítulos são muito mais longos do que outros. Os estilos também não são homogêneos: alguns nasceram como intervenções orais e outros resultaram de um trabalho de redação específico para esta obra.
Na primeira parte, dedicada aos pais fundadores, pode ler-se a extensa entrevista que McLuhan concedeu à Playboy, em 1969, e no qual explicada demoradamente os conceitos principais do seu pensamento. Pode também ler-se a conferência de Neil Postman proferiu em 2000, na primeira assembleia da Media Ecology Association, e que marcou indelevelmente a afirmação desta área específica dos aber. A terceira contribuição é de Jésus Octávio Elizondo Martínez que apresenta uma descrição detalhada daquilo que se denominou como Escola de Toronto e descreve as interações entre os diversos atores que permitem a McLuhan construir o seu pensamento. O último capítulo está a cargo de Thom Gencarelli que descreve as repercussões que o pensamento de Neil Postman teve no ambiente cultural dos Estados Unidos da América, sobretudo no campo da educação para os media.
Os discípulos daqueles pais fundadores são o foco sobre o qual se centra a segunda parte da obra, visando a institucionalização da ecologia dos media. Conta com trabalhos, de autores que, cada um deles, trabalhou muito de perto com Marrshal McLuhan ou Neil Postman. Lance Strate que, entre outras coisas, dirigiu por mais de uma década a Media Ecology Association, tem aqui um texto com o título Estudar os media como meios: McLuhan e a abordagem da ecologia dos meios. Paul Levinson, que fez tese de doutoramento com Neil Postman, vê se representado com um texto com o títuloOs princípios da evolução dos meios: a sobrevivência do mais apto. Kobert K. Logan, por fim, assina o terceiro texto desta secção, intitulado A base biológica da ecologia dos media. De registar que nesta segunda parte, os textos apresentados são traduções para castelhano de publicações anteriores, mas que se pretendeu recuperar para ilustrar a construção teórica da ecologia dos meios.
A terceira parte intitula-se As novas fronteiras e oferece uma amostra das novas fronteiras que se abrem à reflexão. Indrek Ibrius realiza uma análise teórica da evolução dos meios de comunicação, a partir da semiótica da cultura, propondo uma abordagem multidisciplinar na qual interpreta a evolução dos média a partir de outros autores e paisagens culturais, afastando-se daquela que McLuhan vincou. Denis Renó, num texto intitulado Mobilidade y produção audiovisual: mudanças na nova ecologia dos media, recupera as reflexões fundamentais de McLuhan e reflete com elas os novos formatos informativos que os dispositivos móveis tornaram possível. Por fim, Sergio Roncallo Dow e Diego Mozarra assinam um texto intitulado Ecologia, arte y política: a estética como control (contra) ambiental. A partir da imagem de “sonda” de McLuhan, relacionam arte, estética e política, esperando que com a capacidade de um artista para tornar visível o ambiente criado pelos media, ainda que, esse ato de visibilidade ou consciência, seja escandaloso, porque transgride as normas da época.
Por fim, resta referir que estamos perante uma obra que na tradição inglesa, sobretudo dos Estudos Unidos, seria uma “reader”, onde se agrupam e traduzem textos fundamentais de uma determinada disciplina científica. Esta obra oferece ao leitor uma introdução completa ao campo da “ecologia dos média”.