1. O conceito de harmonia é estruturante da cultura, concebida esta como quadro inspirador de sentido para o exercício da liberdade, para a busca da realização pessoal e da felicidade, para o progresso da civilização. A busca da harmonia é ideal para a cultura clássica, é desafio e mistério na compreensão bíblica do homem e da história, é anseio de poetas e de místicos, é chave da beleza para os artistas, é conceito nuclear nas filosofias, é objectivo para todos os intervenientes na explicação e transformação do homem, do universo e da história, é expressão decisiva da Sabedoria. Curiosamente o sentido primeiro de “economia” é a busca da harmonia, realizando a unificação criativa de todos os elementos que entram no conceito de plenitude humana. Nesse sentido, antes de ser um conceito técnico-científico aplicado a uma determinada área da actividade humana, a “economia” é uma categoria teológica, que significa a busca da plena realização humana. Assim se fala de “economia da salvação”.
A busca da harmonia é árdua e complexa, coincide no existencial histórico com a realização da liberdade, é caminho a percorrer, individualmente e em comunidade, pois ninguém atinge a harmonia sozinho, sem a inter-acção da comunidade a que pertence. Todas as sabedorias religiosas e, de modo particular, a mensagem cristã, admitem que a completa harmonia não se atinge na existência temporal-histórica e que a definitiva harmonia, pessoal e comunitária, é meta-histórica, numa humanidade transformada, “novos céus e nova terra”. A tensão da eternidade é, em última análise, a tensão da harmonia definitiva.
2. O carácter complexo da busca da harmonia sente-se, desde logo, na busca da felicidade pessoal. Reconduzir à harmonia, que permite a felicidade, a complexa realidade do ser humano, ser corpóreo, irremediavelmente ligado ao universo, e ser espiritual livre, capaz de pensamento e de emoções, de realizações criativas e de contemplação estética da beleza, protagonista do seu próprio projecto de vida, mas inevitavelmente dependente de outrem para a sua realização, capaz de amor e de conflito, é obra de arte criadora, é a criação continuada que, para nós, os crentes, supõe a intervenção solícita do amor criativo de Deus.
Uma das exigências desta busca da harmonia é a inevitável dimensão social e comunitária do ser humano, o facto de ninguém chegar à harmonia se não se empenha na busca da harmonia da comunidade a que pertence. Aí ressaltam como desafios as diferenças, a harmonizar com o que todos têm em comum. A harmonia pessoal de cada um depende da harmonia da família a que pertence, da comunidade em que se insere, da sociedade em que se enquadra. A busca da harmonia da família e da comunidade, em que a Igreja tanto insiste, são apenas momentos ou etapas da busca da harmonia global da sociedade, que se deseja pacífica, fraterna, espaço de convivência, de respeito e de partilha. A construção desta sociedade harmónica constitui a essência do progresso, baliza a civilização, é a “utopia” da democracia, em que todos, iguais em dignidade e direitos, são responsáveis por todos. A organização da sociedade democrática deveria reflectir sempre um estádio avançado da busca da sua harmonia. É neste sentido que a globalização é um desafio novo à construção da harmonia, numa “economia” da humanidade como um todo.
Uma única família humana
3. O fenómeno da mobilidade humana, congénito à humanidade desde o seu início, mas que atinge, nos nossos dias, dimensões gigantescas, a facilidade dos transportes, a mediatização da vida humana, dão ao homem contemporâneo uma autêntica consciência de humanidade, de pertença a uma única “família humana”, no dizer do Papa João Paulo II. Este fenómeno acentuou a consciência das diferenças, étnicas, culturais, religiosas, de concepções e estádios de desenvolvimento, de modelos de sociedade. Mas deve proporcionar idêntica consciência do que é comum e inalienável, o “universal humano”, património de dignidade e de igualdade de direitos ao desenvolvimento harmónico. E ainda é mais ténue a consciência da responsabilidade de todos por todos e da pertença a todos da “casa comum”, que é o universo em que habitamos, nas suas riquezas e potencialidades, património comum de toda a humanidade. A afirmação do “destino universal dos bens”, corajosamente lançada por João Paulo II, relativiza os direitos das sociedades e dos Estados, porque lhes aumenta a responsabilidade na busca do “bem-comum” universal.
Esta consciência de unidade de uma só “família humana”, acentua o conhecimento da diversidade e da diferença, que devem ser valorizadas e não ignoradas, na busca da harmonia global. Torna-se claro que nenhum país ou região do globo se podem desenvolver sozinhas. O progresso em ordem à harmonia ou será global ou não será. Quando Paulo VI proclamou em Bombaim que o progresso é o novo nome da paz, afirmou essa interdependência universal. A defesa de interesses particulares por países e povos é, hoje, um dos obstáculos a ultrapassar na busca da harmonia global. Isso traz às diversas políticas das nações exigências tão novas, que alteram essencialmente a própria essência da política. De certo modo, cada governante ou decisor, age sempre em nome da humanidade.
Este dinamismo global é já notório nos principais sectores do “bem-comum” universal. A política concebida como condução do destino dos povos tem já consciência desta responsabilidade universal, embora não seja ainda suficientemente eficaz, a ponto de levar a renúncias particularistas e a opções generosas, em nome do “bem-comum” universal. Vejam-se as dificuldades nas políticas do ambiente e de defesa do planeta, inevitavelmente universais e na própria partilha das aquisições da ciência, tantas vezes condicionadas a interesses materiais. Tudo isto sublinha a importância dos organismos internacionais e da sua capacidade real de intervenção, na busca de uma desejada autoridade mundial.
Nas políticas económicas e na própria ciência económica as consequências desta globalização da “família humana”, são sérias e inevitáveis. Compete à economia gizar os modelos e os mecanismos do desenvolvimento que hoje têm de integrar, inevitavelmente, os dados reais da humanidade. As dificuldades e potencialidades sentidas no desenvolvimento de cada região do mundo, incluído esse drama gigantesco da pobreza, tornaram-se dados incontornáveis das economias dos países ricos e desenvolvidos. Os passos significativos que já se deram da harmonização do comércio em plano mundial são disso uma concretização. Mais hesitantes são ainda as políticas de emigração, pela complexidade de que se revestem e pelos novos equilíbrios que sugerem. A emigração é, hoje, um grito angustiado de alerta para a necessidade de novos cenários de corresponsabilidade global nos processos de desenvolvimento.
O regresso da cultura como factor decisivo
4. A busca desta harmonia universal torna-se impossível se não se considerar de novo a importância decisiva do factor cultural. Nada acontecerá de maneira sólida e duradoira se não se tiver em conta o contexto cultural do desenvolvimento. Isto convida-nos a reflectir sobre os modelos de desenvolvimento que tenham em conta o factor cultural e em que a dimensão económica não pode ser a única. Um desenvolvimento sustentado para os diversos povos tem de alicerçar-se na visão cultural do homem e da sociedade e, a nível global, passa necessariamente pelo diálogo inter-cultural que inclui o diálogo inter-religioso.
A cultura é o quadro onde se constrói a harmonia, pois só nela se bebe o sentido do homem e da história. Da importância dada ao factor cultural emerge a importância da dimensão ética do desenvolvimento. Também no processo do desenvolvimento das sociedades os fins não justificam os meios. Nem tudo é legítimo, mesmo que seja eficaz, se tivermos em conta a dignidade da pessoa humana e o modelo de felicidade que a realiza. A imensa pluralidade de culturas e de religiões convida-nos a definir o tal “universal humano”, base inspiradora de uma ética universal. A economia, no âmago da própria epistemologia, tem de valorizar a dimensão cultural e reconsiderar a, por vezes apregoada, neutralidade ética. Só a exigência da perspectiva ética a levará a propor modelos sempre renovados de desenvolvimento.
A globalização não é só uma ameaça. Ela apresenta-nos um desafio apaixonante de busca da harmonia, não apenas de cada povo, mas de toda a família humana. É um longo caminho a percorrer, que precisa de “profetas” que rasguem clareiras de esperança, e levem as sociedades a não ficarem prisioneiras do pragmatismo das soluções imediatas. Este horizonte alargado da esperança é essencial para um futuro novo da humanidade.
† JOSÉ, Cardeal-Patriarca
[Artigo publicado na Ravista ECONOMIA, em Dezembro de 2005. Foi-me partilhado por um colega. Obrigado!]