A educação cristã na Web II

A fé, ao ser percebida como relação, postula um processo de transmissão, e este é-o na medida em que supera o tempo e o espaço[1], o que evidencia a importância e o significado da tradição que, de si, inclui algo próximo à educação. Razão pela qual a educação da fé e a formação dos educadores da fé deve ter como solo privilegiado a reflexão sobre a transmissão da fé, nas suas diversas coordenadas: pessoal, eclesial e de conteúdo. Estas coordenadas assumem enfoques diferentes ao serem integradas na cultura digital, promovida pelo paradigma informacional[2]. Surge algo de novo, a que a instituição eclesial, apesar dos reiterados apelos do Magistério[3], ainda não foi capaz de dar uma resposta satisfatória, pelo menos no que à educação cristã diz respeito. Se à tradição importassem apenas os conhecimentos (fides quae), a Internet vista como mera substituição de suporte, não só não ofereceria dificuldade como traria grandes vantagens; mas importa também a adesão vital (fides qua), sem a qual não é possível a experiência de fé no Deus de Jesus Cristo. Para a educação e transmissão da fé não basta, então, dizer; é preciso suscitar a fé[4], promovendo o diálogo através de uma proposta significativa para cada indivíduo. Pela narração da experiência pessoal de fé — pelo testemunho — convida-se outros à experiência de Deus. 
O papa Francisco desafia os agentes pastorais a exercitar-se 
«na arte de escutar, que é mais do que ouvir. Escutar, na comunicação com o outro, é a capacidade do coração que torna possível a proximidade, sem a qual não existe um verdadeiro encontro espiritual. Escutar ajuda-nos a individuar o gesto e a palavra oportunos que nos desinstalam da cómoda condição de espectadores. Só a partir desta escuta respeitosa e compassiva é que se pode encontrar os caminhos para um crescimento genuíno, despertar o desejo do ideal cristão, o anseio de corresponder plenamente ao amor de Deus e o desejo de desenvolver o melhor de quanto Deus semeou na nossa própria vida» (EG 171).
Este é o objetivo da evangelização, a ser integrado quando se recorre às novas tecnologias, que não são meros instrumentos. Antes promovem um determinado estilo de sociedade, a qual, e através da qual, é preciso evangelizar[5]. Mas este é um processo comunitário, logo responsabilidade de todo o corpo eclesial, onde cada sujeito é convidado a contribuir com a narração da sua experiência de Deus, com o seu testemunho. Esta experiência só o é plenamente quando integrada numa comunidade eclesial que aprende, celebra, vive e reza (Cf. Act 2, 42-47) a presença transformadora do Deus que se dá a conhecer na história e faz desta o lugar de encontro com Ele (Cf. GS 4). A recepção da tradição dá um significado novo às experiências pessoais, relidas a partir do acontecimento fundamental, o evento Jesus Cristo. Mas importa ter presente que a experiência do sentido da fé «se exprime por um conhecimento per connaturalitatemde tudo o que guarda a fé, de tipo intuitivo-global e não tanto discursivo e argumentativo»[6], pelo que a objetividade do sentido da fé e a sua indefectibilidade são expressões da realidade da redenção operada por meio da Encarnação e do dom do Espírito Santo. O Evangelho tem, então, uma oportunidade neste mundo da globalização digital, porque se trata de «dar forma históricaà manifestação do Amor de Deus no evento humano»[7]; daí a importância da narração, como auto-compreensão e como testemunho[8]. Neste contexto, 
«o exercício correto do sensus fideidepende de uma prática da fé que corresponda autenticamente à Revelação de Deus, como experiência íntima e eclesial de encontro com o Senhor, metendo em jogo a própria liberdade na adesão pessoal a Cristo, na participação vital no mistério de Deus, conhecido porque amado»[9].


[1]Cf. R. DebrayTransmettre, ed. Odile Jacob, Paris 1997; W. Moser, «Transmettre et communiquer. Chassés-crisés conceptuales à partir de Régis Debray», in Intermédialités: Histoire et théorie des arts, des lettres et des techniques5 (2005) 191-206.
[2]Cf. S. Hjarvard, «The mediatization of religion: A theory of the media as agents of religious change», in Northern Lights: Film & Media Studies Yearbook6, 1 (2008) 9-26; M. Lövheim, «Mediatisation of religion: A critical appraisal», in Culture and Religion12, 2 (2011) 153-166; G. Lynch, «What can we learn from the mediatisation of religione debate?», in Culture and Religion12, 2 (2011) 203-210.
[3]Veja-se, a este propósito, as Mensagens papais para o Dia Mundial das Comunicações Sociais, sobretudo a partir de 2002, bem como os documentos «Ética na Internet» e «Igreja e Internet», publicados nesse mesmo ano pelo Pontifício Conselho para as Comunicações Sociais.
[4]Conferência Episcopal Portuguesa, «Para que acreditem e tenham vida. Orientações para a catequese actual», in IdemDocumentos Pastorais. VI Volume 2002-2005, 253-278.
[5]Cf. D. ZanonO impacto da sociedade em rede sobre a Igreja católica. Elementos para uma cibereclesiologia, ed. Paulus, Lisboa 2012.
[6]A.Staglianò, «Sensus fideicristiano in tempo di globalizzazione», in C. Giuliodori, et al. (ed.), Globalizzazione, Comunicazione e tradizione, ed. San Paolo, Milano 2004, 199.
[7]Ibidem, 206.
[8]Cf. P. Ricoeur, «L’identité narrative», in Esprit7-8 (1988) 295-304; IdemSoi-même comme un autre, ed. du Seuil, Paris 1990.
[9]A.Staglianò, «Sensus fideicristiano in tempo di globalizzazione», in C. Giuliodori, et al. (ed.), Globalizzazione, Comunicazione e tradizione, ed. San Paolo, Milano 2004, 200; Cf. DV 8; LG 12.

A educação cristã na Web

O facto de que a Igreja exista para evangelizar (Cf. EN 14) leva a que as reflexões produzidas pela Teologia Prática tenham a transmissão da fé como pano de fundo, em torno do qual, ou ao serviço do qual, realiza o seu trabalho. É neste quadro que nos inserimos, procurando perceber até que ponto o digital, entendido aqui no sentido amplo e cultural, pode ser utilizado na educação cristã. 
Na cultura digital, o processo de ensino e aprendizagem — quer na aprendizagem ao longo da vida, quer na aprendizagem informal — dá destaque ao que Manuel Castells denomina por “nós”. Estes podem ser bibliotecas, organizações, pessoas, sítios da internet, livros, revistas; numa palavra, tudo a que se possa recorrer para resolver um problema ou descobrir algo que se quer aprender. A importância de cada “nó” depende, não das suas características especiais, «mas da sua capacidade para os objetivos da rede»[1], daquilo que aporta e potencia. 
As redes, como estruturas abertas, promovem organizações sociais dinâmicas e abertas, muito suscetíveis à inovação e à expansão, o que coloca o problema da identidade, e da sua manutenção, com tudo o que isso implica na missão da Igreja ao serviço à fé, para que a identidade continue a ser cristã e não outra, no ambiente digital.
Este ambiente, na ligação com os outros ambientes com os quais o indivíduo interage, continua a ter um tempo e um espaço próprios. O espaço, embora imaterial, continua a ser o suporte das práticas que acontecem em simultâneo e que estão interligadas, ao passo que o tempo deverá ser compreendido como uma sequência de práticas, se bem que no tempo intemporal deixa de haver uma sequencia cronológica, para se privilegiar a simultaneidade, o perpétuo presente. 


[1]M.Castelles, «Informacionalismo, redes y sociedade red: una propuesta teórica», in M. Castelles(ed.),La sociedad red: una visión global, Alianza Editorial, Madrid 2006, 27.