A linguagem analógica: o seu contributo à Teologia

A dimensão do mistério, sempre presente na experiência religiosa, agudiza-se quando tentamos falar sobre ela. Não poucas vezes faltam-nos as palavras para nos expressarmos e transmitirmos as nossas experiências. Perante esta dificuldade, Wittgenstein defende que o que não se pode dizer com clareza deve ficar reduzido ao silêncio. Cairíamos então num ateismo semântico.
Para tentar solucionar esta dificuldade vamos, neste trabalho, lançar mão da analogia e ver o contributo que ela pode dar à Teologia.
I. A METÁFORA
O homem é, por si, um ser sociável. Precisa dos semelhantes para se realizar. Para entrar em contacto com eles usa a linguagem, a fim de comunicar as suas experiências. Mas o universo das experiências “leva-nos à beira do mistério último não susceptível da experiência directa, apenas indirecta ‘em, com e sob’ a nossa experiência quotidiana. Mas quando tentamos descrever este mistério falta-nos a linguagem. A experiência tem uma última dimensão inefável”[1].
O homem, espontaneamente, relaciona as coisas entre si por imagens, comparações e símbolos. Com estes pretende exprimir as suas experiências e a sua situação no mundo.
A importância da analogia, ou pensamento analógico, vem do facto de se chegar a alguma coisa geral, por indução, a partir de coisas particulares e semelhantes. Na analogia estão presentes a unidade e a pluralidade, a identidade e a diferença. Como se vê possui uma estrutura dialéctica.
A analogia fundamental, em que todas se apoiam, é a analogia entis. A inteligência humana está aberta ao infinito. Na afirmação do particular inquieta-se, pois reconhece nele o infinito. É pela existência do finito que reconhece a existência do infinito, mas nota-se que são de maneira diferente e, ao mesmo tempo, não tão diferentes. Se assim não fosse não poderiam estar presentes no mesmo conhecimento: o conhecimento humano.
“Metamorfizar correctamente é ver – contemplar, ter olhar para – o semelhante. A epífora é este olhar e este lance de génio: o não ensinável, o não adquirível”[2].
“A metáfora é por excelência um tropo por semelhança”[3]. É esta que revela “a estrutura lógica do ‘semelhante’, porque, no enunciado metafórico, o semelhante é apercebido  apesar da diferença, apesar da contradição”[4]. É esta a estrutura lógica que dá vida à metáfora, que lança “o impulso da imaginação num ‘pensar mais’ ao nível do conceito”[5], pois “as significações não são fórmulas estáveis mas dotadas de uma capacidade e de um dinamismo, que lhes permitem servir outros referentes e cooperar na inovação semântica”[6].
A metáfora é considerada como uma forma de analogia[7]. E o conhecimento por analogia é um conhecimento “do semelhante pelo semelhante que detecta, utiliza, produz similitudes de maneira a identificar os objectos ou fenómenos que percebe ou concebe”[8].
Para se verificar um pensamento o mais exacto possível deve “haver uma ideia dominante, alguma coisa que corresponda à característica principal do objecto e que dê unidade ao que é vário e disperso”[9].
Em suma, nos conceitos análogos, apesar de existir diferenças, há também um enlace que possibilita o emprego das palavras com sentido e significado[10]. A linguagem analógica ocupa o lugar intermédio entre o equívoco e o unívoco e expressa uma semelhança que inclui a igualdade na diferença. É uma semelhança de relações. “Recorre de um modo novo à dialéctica da quotidiano e do estranho, característica da linguagem metafórica”[11].
II. A LINGUAGEM PARABÓLICA
De entre os problemas que hoje se põe à fé, a linguagem ocupa um papel de destaque. Quando nos exprimimos sobre esta corremos o risco de não sermos compreendidos – há algo que não funciona[12].
Para falarmos acerca da transcendência apenas nos podemos apoiar naquilo que lhe é secundário e subsequente[13]. Com a linguagem parabólica dá-se um contributo importante para que a experiência religiosa não fique sem voz. Esta permite que as palavras sejam utilizadas de uma nova maneira, que expressem algo de diferente. Não reproduzem apenas o objecto mas, acima de tudo, representam uma descrição criadora da realidade. Dão algo mais à realidade física que esta não possui[14]. Diz do mundo físico mais do que aquilo que é.
Se por um lado a experiência religiosa ultrapassa a pura inteligência e compromete a vontade, por outro é razoável. “A racionalidade verdadeira não reprime a analogia, alimenta-se dela ao mesmo tempo que a controla”[15].
Visto que Deus não é uma coisa do nosso mundo, em face de um termo estrangeiro, poderiamos dizer que este perdeu o significado. Mas não, na linguagem parabólica as palavras são elevadas[16].  Isto porque as palavras humanas e as divinas, da revelação, se fundem. Sem que as divinas deixem de o ser e as humanas percam o seu significado.
Se observarmos os resultados da filosofia da linguagem  e tomarmos a sério a força criadora da linguagem, “que não se limita a reproduzir a realidade da nossa experiência quotidiana e científica, mas que projecta o conjunto da realidade e a dimensão religiosa e a partir daí é capaz de chegar, mediante as metáforas, a uma nova realidade criadora e a expressar o novo, então encontramos a doutrina da analogia, que vem a ser a doutrina da linguagem da fé”[17].
Com isto não negamos a transcendência de Deus. Pois a linguagem sobre Ele deve ser capaz de mostrar ao mesmo tempo a distância e a proximidade – “aproxima Deus por via  analógica e, ao mesmo tempo, também criam distâncias. Entre Deus e o homem existe um abismo que o próprio Deus transcende ao dar, justamente com as imagens, a Sua presença”[18]. Deus é o totalmente outro.
A doutrina da analogia nasceu da ambição de abraçar numa única doutrina a relação horizontal das categorias com a substância  e a relação vertical das coisas criadas com o Criador[19]. A analogia, com efeito, “move-se ao nível dos nomes e dos predicados; ela é de ordem conceptual. Mas a sua condição de possibilidade está noutro lugar, na própria comunicação do ser. A participação é o nome genérico dado ao conjunto das soluções trazidas a este problema. Participar é, de um modo aproximativo, ter parcialmente o que o outro possui ou é plenamente”[20]. Ricouer acrescenta mais à frente: “no jogo do Dizer e do Ser, quando o próprio Dizer está a ponto de sucumbir ao silêncio, sob o peso da heterogeneidade do ser e dos seres, o próprio Ser relança o Dizer, em virtude das continuidades subterrâneas que conferem ao dizer uma extensão analógica das suas significações. Mas, no mesmo lance, analogia e participação são colocadas numa relação de espelho, correspondendo-se exactamente unidade conceptual e unidade real”[21].
Em resumo, podemos ver que a metáfora dá algo mais à linguagem que a realidade física não possui. Nomeadamente na experiência religiosa. Assim a palavra Deus “expressa a realidade de tal modo que faz brilhar no mundo ‘algo’ que é mais que o mundo”[22]. A linguagem sobre Deus converte o mundo em metáfora de Deus. É um chamamento a contemplar “o mundo como metáfora e as suas indicações, ou seja, a mudar o modo de pensar, crer e esperar”[23]. A analogia faz ver outro Mundo, outro Espaço e outra Vida[24]. 
III. A analogia hoje
Neste capítulo vamos abordar a questão da analogia baseada partindo da filosofia moderna.
É possível uma mudança profunda na doutrina da analogia se partirmos de um ponto diferente: a metafísica grega partiu do cosmos, nós vamos partir da filosofia da liberdade. “A questão de Deus não se decide na problemática da natureza, mas no debate em torno da liberdade do homem”[25].
A analogia constitui uma interpretação das experiências realizadas livremente. “A liberdade move-se em tensão entre o infinito e o finito, entre o absoluto e o relativo. Nós podemos distanciarmo-nos, no acto de liberdade, da experiência finita e condicionada, e concebe-la como tal porque nos projectamos até ao infinito e incondicionado”[26].
Nós só concebemos o finito, como finito, dentro de um horizonte infinito. Só no incondicionado concebemos o condicionado como tal. Todo o finito nos projecta para o infinito[27].
“Esta estrutura antecipativa da liberdade e da razão humana implica um conhecimento latente do incondicionado e o infinito, que se classifica como análogo”[28].
Tendo em conta que “a analogia do ser expressa o mais e o novo da liberdade frente à mera facticidade do mundo. Ela ilumina-nos para ver o mundo no horizonte da liberdade e entende-lo como âmbito da liberdade; ou seja, ajuda-nos a conceber o mundo como mundo histórico”[29]. Com esta visão da analogia podemos ver as várias possibilidades do real: o futuro. “Por isso uma doutrina da analogia assim renovada pode-se considerar como versão especulativa da forma linguística da metáfora e da linguagem figurada dos evangelhos”[30].
Se Deus for concebido como liberdade absoluta, em quem fazemos incidir a nossa liberdade finita e vemos o mundo como âmbito da liberdade, “não há possibilidade nenhuma de demonstrar Deus como necessário a nível conceitual. Deus como liberdade perfeita é mais que necessário; por ser livre, só pode ser conhecido em liberdade quando ele se abre livremente ao homem”[31].
Ao tentar conhecer Deus no horizonte da liberdade não estamos a especular abstractamente sobre Deus. Estamos, isso sim, a atender aos sinais que Deus revelou livremente no mundo e, à luz destes, conceber a realidade como espaço de liberdade e de história[32].
A doutrina da analogia permite-nos, a partir do testemunho bíblico, abrirmo-nos a uma nova realidade. Dá-nos uma linguagem que permite ao homem falar sobre Deus[33].
“Neste sentido, a analogia fidei implica a analogia entis ou da liberdade”[34]. Pois o possível é o melhor que o ser tem para dar.
Conclusão
além dos conceitos unívocos e equívocos, existem os análogos. São estes que permitem à linguagem expressar-se sobre o que é diferente da nossa realidade física.
Assim, a linguagem analógica dá à linguagem mais do que a realidade física possui. Permite ver no mundo mais do que ele é: converte-o em metáfora de Deus.
O homem sente em si o conflito do querer e aspirar ao mais, em conflito com a realidade que possui. Vê que o que o rodeia pode ser diferente. Mas a esta diferença encontra-a na liberdade.
Só na liberdade se encontra Aquele que se revelou livremente.
 Luís Miguel FIGUEIREDO RODRIGUES



[1]Walter KASPER,  El Dios de Jesucristo, “Verdad e Imagen” 89, Ed. Sígueme, Salamanca 19944, 110-111.

[2] P. RICOEUR, A Metáfora Viva, Ed. Rés, Porto 1983, 291-292.

[3] Idem, 260; Cf  92.

[4] Idem, 293- 294.

[5] Miguel BAPTISTA PEREIRA, Introdução à tradução portuguesa da Metáfora Viva de Paul Ricoeur, in P. RICOEUR, o.c., 37.

[6] Ibidem.

[7] Cf W. KASPER, o.c., 119.

[8] Edgar MORIN, O Método III. 3. O conhecimento do conhecimento/ 1, “Biblioteca Universitária” 44, Pub. Europa-América, Mem Martins 1987, 131.

[9] J. MENDES, Teoria Literária, Ed. Verbo, Lisboa 1980, 123.

[10] Cf  O. MUCH,  Doctrina filosofica de Dios, “Biblioteca de Teologia” 6, Ed. Herder, Barcelona 1986, 176; O. de la Brosse, Analogia, in A.-M. Henry. ph. rouillard (dir), Dictionnaire de la foi chrétienne, I, Ed. du Cerf, Paris 1968, 254.

[11] W. KASPER, o.c., 119; Cf 117.

[12] J. DANIÉLOU, Lenguage e fe, in AAVV, La fe hoy, “Biblioteca palavra”2 ed. Palabra, Madrid 1969, 141.

[13] Karl RAHNER, Curso fundamental da fé. Introdução ao conceito de cristianismo, Ed. Paulinas, S. Paulo 1986, 91.

[14] W. KASPER, o.c., 117.

[15] E. MORIN,  o.c., 133.

[16] J.-P. MANIGNE, Pour une poétique de la foi. Essai sur le mystère symbolique, “Cogitatio Fidei”43, Ed. du Cerf, Paris 1969, 120.

[17] W. KASPER,  o.c., 118.

[18] J. VLOET, O Símbolo e a nossa linguagem acerca de Deus, in “Communio”(Lisboa) 1(1989)6, 500.(499-508); Cf G. LAFONT, Analogie, in R. Latourelle – R. Fisichela Dictionnaire de Théologie Fondamentale, ed. du Cerf, Paris 1992, 10.

[19] Cf P. RICOUER,  o.c., 411-412. É o que se chama a onto-teologia.

[20] Ibidem, 414.

[21] Ibidem, 420-421.

[22] W. KASPER, o.c., 117; Cf Maria C. D. CARVALHO, Centralidade Cristológica do “Eschaton”. nos escritos de Hans Urs von Balthasar, “Biblioteca Humanística e Teológica” 6, ed. UCP / Fundação Eng. António de Almeida. Porto 1993, 133.

[23] W. KASPER, o.c., 118.

[24] Cf Manuel ANTUNES, Legómena. Ed. INCM, Lisboa 1987, 140-141.

[25] W. KASPER, o.c., 41; Cf J.L. LUCAS, Dios, horizonte del hombre, “Sapientia Fidei”3, ed. BAC, Madrid 1994.

[26] Ibidem, 123.

[27] Cf Supra p.?!??

[28] W. KASPER, o.c., 123.

[29] Ibidem, 123.

[30] Ibidem, 124.

[31] Ibidem, 124; Cf J.-P. MANIGNE, o.c., 121.

[32] Cf Ibidem, 124.

[33] A palavra Deus tem sentido.

[34] W. KASPER, o.c., 124.

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