Humanismo
É inquestionável que uma das marcas da cultura moderna – que, apesar de todas as crises, continua a determinar o horizonte dos nossos valores – é a sua orientação humanista. Mesmo que de formas muitas vezes ambíguas e até desmesuradas, a herança cultural do judaísmo e do cristianismo mede-se sobretudo pela centralidade da pessoa humana, sujeito de dignidade fundamental, anterior e superior a todas as ideologias, sistemas e instituições.
O conteúdo da fé cristã encontra aí uma das mais excelsas aplicações sócio-culturais. Tendo em conta que essa dignidade lhe vem do próprio Deus e que só com ele a pode sustentar e manter, a transmissão da fé deverá tornar claro que o caminho da Igreja – porque caminho de Deus – é o próprio ser humano, na sua mais fundamental humanidade. Por isso, o antropocentrismo não contradiz o teocentrismo; ambos se pressupõem mutuamente, segundo a mais genuína concepção bíblica de Deus e do ser humano.
Mas o antropocentrismo bíblico não é individualista nem egoísta. A centralidade do ser humano é a centralidade do outro ser humano e não do si mesmo de cada um. Por isso, o humanismo da fé cristã é o humanismo da completa doação ao outro, sobretudo àquele que mais desfavorecido é pelas circunstâncias sócio-existenciais. A vivência da fé cristã implica, por isso, doação da vida aos outros, quer no apoio concreto a situações existencialmente difíceis, quer na denúncia profética da desumanização das relações, no combate directo contra a pobreza, na promoção da justiça e da paz, na defesa da vida de todos os que não a podem defender por si mesmos, etc.
Sabemos, contudo, que a nossa cultura actual não é univocamente humanista e que mesmo os movimentos que se pretendem humanistas o são, por vezes, de modo muito ambíguo. O processo de expansão dos grupos económicos contemporâneos aponta para uma clara tendência de subjugação das pessoas humanas concretas aos interesses de sistemas anónimos deslocalizados e despersonalizados.
Esse contexto redobra a exigência e a pertinência de uma transmissão da fé personalizada, com a pessoa humana no centro, quer enquanto receptor da Palavra, quer enquanto conteúdo vivo da própria fé, que exige compromisso pelo destino dos outros.