Fraternidade

Convém ter presente que o conceito de fraternidade não é um produto originário da Revolução Francesa, antes tem as suas raízes bem fundadas na história da humanidade, percebida numa perspetiva europeia. Importa, então, fazer um recorrido sobre o modo como a fraternidade foi percecionada ao longo da História

Luís M. Figueiredo Rodrigues

No opúsculo La Fraternité, Pourquoi? (2019), Edgar Morin contrapõe ao modo darwuinista de compreender a sociedade uma proposta baseada na ajuda mútua e na cooperação. A obra A Origem das Espécies por meio da Seleção Naturalou A Preservação das Raças Favorecidas na Luta pela Vida (1859), de Charles Darwin, influenciou uma certa compreensão da evolução das sociedades, de um modo tal que a teoria da seleção natural justificou a competição entre os indivíduos e as diversas estratégias que visavam que só sobrevivessem os mais aptos. Esta seleção natural levaria a um aperfeiçoamento e, consequentemente, a um progresso qualitativo. Contudo, Morin, apoiando-se no pensamento de Pierre Kropotkine, sobretudo na obra O Apoio Mútuo: Um Fator de Evolução (1902), argumenta que a vida, mais do que na competição, apoia-se na cooperação. Cada uma das espécies, ao desenvolver-se no âmbito de um ecossistema concreto, evidencia que as que melhor se adaptam não são as mais agressivas, mas sim as mais solidárias. Em cada ecossistema há predadores e agressores, que competem com o meio, mas também há a interação positiva, a simbiose e a cooperação, imprescindíveis para o desenvolvimento das espécies e da vida, seja ela de que reino for. Veja-se, a título de exemplo, a importância da polinização, onde a cooperação entre os insetos e os vegetais é imprescindível para a sobrevivência de todos. Edgar Morin conclui que é a resistência à crueldade de tudo o que é predatório e ameaçador para a vida que suscita as práticas de entreajuda e complementaridade, capazes de criar amplos espaços de solidariedade, imprescindíveis para que haja vida. Esta evidencia a necessidade, sempre, de relação com outros, seja através de relações parasitárias ou predatórias, seja através de associações ou simbioses. Em síntese, a existência da vida acarreta sempre o conflito e a cooperação.

A partir deste enquadramento, percebe-se melhor que, face aos perigos comuns de âmbito global – sejam eles ecológicos, económicos, bélicos ou outros –, Edgar Morin preconize a necessidade imperiosa de uma fraternidade humana que salvaguarde a nossa comunidade humana de destino. O conceito de fraternidade aglutina estas problemáticas de uma forma única: como uma espécie de autoajuda, cooperação ou comunidade, e como um vínculo de âmbito familiar, laboral ou político. Diante do inimigo, da miséria humana ou da solidão, talvez a fraternidade se denomine mais através do sinónimo “solidariedade”. Já diante do estrangeiro, do estranho e/ou daquele que é diferente, por qualquer motivo, se denomine como “hospitalidade”. O fulcral é que a fraternidade se caracteriza pela impossibilidade de ser imposta por aqueles que detêm a autoridade; é preciso que surja de cada sujeito, dado que se caracteriza pela relação afetiva e afetuosa interpessoal. Não é, pois, de estranhar que cada elemento da tríade da Revolução Francesa (1789) – liberdade, igualdade e fraternidade – tenha visto desenvolvimentos distintos. Se os primeiros dois foram amplamente refletidos, regulados, defendidos e promovidos, já o último se vê sucessivamente olvidado.

Convém ter presente que o conceito de fraternidade não é um produto originário da Revolução Francesa, antes tem as suas raízes bem fundadas na história da humanidade, percebida numa perspetiva europeia. Importa, então, fazer um recorrido sobre o modo como a fraternidade foi percecionada ao longo da História.

História

No mundo da Grécia Antiga, o conceito de irmão dizia-se com o recurso a duas palavras distintas: adelphos e frater. A primeira expressava a fraternidade própria daqueles que partilham o mesmo sangue, ao passo que a segunda – frater – sofreu uma evolução, passando a designar um vínculo de irmandade, já não de ligações familiares, mas proveniente de uma ligação entendida mais em sentido político.

É com Platão que o conceito de “fraternidade” encontra a sua estabilidade, ao considerar que todos os membros de uma cidade são “irmãos”. Esta irmandade é gerada não pelo sangue, mas pela polis. Esta noção de fraternidade cívica tem o seu expoente máximo em Platão, quando diz: “vós sois todos irmãos nesta cidade” (A República, 415a). A desconstrução do significado de “fraternidade”, oriundo da parentalidade familiar, tem como objetivo consolidar uma fraternidade política, capaz de garantir solidariedade, eficiência e concórdia numa comunidade de cidadãos. Estes ajudar-se-ão mutuamente, em caso de qualquer necessidade. A polis passa a ser entendida como a oíkos, o lugar onde cada cidadão sabe que tem um lar.

Facilmente se vê que a fraternidade, o sentir-se irmão (adelphós), ainda que para designar realidades políticas e institucionais, tem sempre subjacente um tipo de relação interpessoal que almeja a consanguinidade ou, pelo menos, ser vista como tal.

Olhando a partir de uma perspetiva europeia, o período que se segue é o medieval, com clara influência judaica, cristã e islâmica. Os textos denominados pelos cristãos de Antigo Testamento (Bíblia), que são, na sua maioria, comuns a judeus e cristãos, na sua versão dos LXX – a que foi traduzida para grego, após a diáspora dos judeus – utilizam o vocábulo adelphós (cf. 1Mc 12, 10) com o significado de “fraternidade” e “amizade”, percebida no contexto de aliança política com povos estrangeiros. Olhando um pouco mais para o conteúdo das narrativas inscritas nos textos sagrados, percebe-se que a fraternidade se baseia na existência de um Deus – o de Abraão, Isaac e Jacó – que não é exclusivo dos descendentes de Abraão. É de toda a humanidade, é universal. Na verdade, isto implicou a compreensão de dois modos complementares de entender a fraternidade: uma fraternidade entre irmãos, dentro da comunidade, e uma fraternidade universal, porque todos criados por Deus.

Com o Novo Testamento, o cristianismo começa a entender a fraternidade como uma relação que, baseada na fé em Jesus Cristo, se dirige ao próximo e à comunidade cristã, em razão da mesma fé, já não por pertencerem à mesma pátria. O conceito de comunidade cristã desborda os limites das fronteiras políticas. A separação entre os que são irmãos dos que não o são, agora, deixa de ser fundada numa escolha política e na pertença a uma determinada polis, para se fundamentar na crença de um Pai comum, um único Deus, no qual os cristãos se consideram irmãos.

Os relatos dos evangelhos são esclarecedores quanto à utilização do substantivo adelphós e, por conseguinte, ao entendimento subjacente ao conceito de fraternidade. Esta não é entendida como a consequência de haver uma relação de consanguinidade, mas é antes baseada numa decisão espiritual, na resposta positiva à fé em Deus. Mesmo quando há uma relação de fraternidade biológica, a fraternidade espiritual sobrepõe-se. Os textos neotestamentários apresentam uma outra ideia que acaba por ser fundamental para se entender o significado da fraternidade universal dos cristãos: a referência aos pequeninos (cf. Mt, 31-46). Os pequeninos e necessitados são entendidos como os “irmãos preferidos” de Jesus Cristo. Os que aceitam ser pequeninos, acolhendo o projeto de Deus como uma criança, esses é que são considerados “filhos de Deus”. O cristianismo fundamenta a fraternidade não apenas numa adesão livre à comunidade cristã, mas sobretudo na participação comprometida com a causa dos pobres e dos humildes, manifestando deste modo a sua identificação com o destino de Jesus Cristo.

Durante grande parte da Idade Média, o conceito de fraternidade ficou como que arredado da esfera social, restringindo-se àqueles que vivam nas comunidades dos mosteiros. Foi preciso chegar à Baixa Idade Média, aos séculos XII e XIII, para que, graças ao contributo árabe, os textos de Aristóteles começassem a ser conhecidos no ambiente latino e ganhassem lugar de relevo nos ambientes intelectuais. A reflexão sobre a amizade útil, agradável e honesta fez com que se tomasse consciência da importância do tema da amizade para a concórdia social. Na sua Ética a Nicómaco, Aristóteles oferece os pressupostos que hão de permitir fundamentar a amizade social. Tal como os irmãos se amam em razão da sua comum paternidade, embora sejam pessoas diferentes, também aqueles que vivem juntos, num mesmo território, estabelecem entre si relações similares à dos irmãos. Daí que a amizade fraterna seja o que mantém as sociedades coesas, em bom rigor bem mais do que a justiça. Em termos sociais, a amizade fraterna denomina-se concórdia.

No Renascimento, o conceito de fraternidade continua a ser muito influenciado pela conceção grega e medieval, bem como pelas concretizações que se realizavam nas confrariasguildas e irmandades. Estas agremiações, de cariz religioso ou não, congregavam indivíduos que partilhavam a mesma profissão ou a mesma devoção religiosa, instituindo entre si o compromisso de ajuda e defesa mútuas.

Merece destaque, pela influência que teve, o ensaio Sobre a Amizade, de Michel de Montaigne, publicado no final do século XVI. Nesta obra, reflete-se sobre a natureza da amizade, sendo percecionada como algo imprescindível para a felicidade do ser humano. A amizade, resultado de uma opção consciente, caracteriza-se por estar baseada na confiança, na honestidade e na lealdade. A amizade é uma forma de fraternidade porque os amigos ajudam-se tal como se fossem irmãos, o que pressupõe a solidariedade e o apoio recíprocos. Trata-se, tal como já vem desde o antigo mundo grego, de um tipo de relação entre indivíduos similar à dos irmãos de sangue. A influência do pensamento de Montaigne fez com que se desejasse tornar possível um tipo de relação entre os cidadãos baseado na integração das suas vontades individuais, no conhecimento autêntico entre si e na manifestação das distintas opiniões. Começa-se a caminhar para uma visão política da sociedade, ao estilo das guildas, onde a vontade comum pudesse vir a tornar-se a matriz da sociedade.

Chegado ao Iluminismo (filosofia das Luzes) e à Revolução Francesa, a fraternidade vê aprofundada a sua compreensão, bem como a sua plena inscrição no âmbito político. Em certa medida, os conceitos de liberdade e de igualdade opõem-se entre si. Quando a liberdade ganha primazia numa sociedade, a igualde é desfavorecida. O mesmo se passa no sentido inverso: quando se procura concretizar a igualdade entre todos, a liberdade fica limita. A superação desta dificuldade foi procurada através da fraternidade, visando a igualde de direitos. Uma vez que a fraternidade promove relações de solidariedade e cooperação, no respeito pelas diferenças, os ordenamentos jurídicos têm o suporte necessário para promover a igualdade jurídica. A igualdade política é protegida pelo corpo legislativo que reconhece e defende a autonomia de cada sujeito. Por fim, a igualde de todos os cidadãos em direitos e deveres promove a igualdade social, que mais não é do que o direito em que cada cidadão vê reconhecida a possibilidade de se autorrealizar livremente.

Mas convém não esquecer que a Revolução Francesa, que consignou os princípios da liberdade, da igualdade e da fraternidade, só muito mais tarde viu consignada na lei fundamental a terceira palavra da sua tríade. Só na Constituição produzida após a Revolução de 1848 é que a fraternidade ganha letra de lei. Aí se escreve, no VIII e último ponto do Prólogo, que “A República deve proteger o cidadão na sua pessoa, na sua família, na sua religião, nos seus bens, no seu trabalho e disponibilizar a todos a educação que é indispensável a todos os homens; deve, através da assistência fraterna, assegurar a existência dos cidadãos necessitados, quer fornecendo-lhes trabalho dentro dos limites dos seus recursos, quer dando, na ausência da família, assistência àqueles que não podem trabalhar”.

A partir daqui, a fraternidade torna-se um tema político e cultural que encontra em muitos Estados um lugar favorável para a sua concretização. Até que, cem anos mais tarde (1948), a Declaração Universal dos Direitos Humanos, no seu primeiro artigo, preconiza que “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade”. Para se ver o impacto que esta Declaração teve, recorde-se que foi aprovada em 1948 pela totalidade dos Estados-Membros da Organização das Nações Unidas, o que fez com que se viesse a tornar o texto de referência em quase todo o mundo para reconhecer a dignidade de todos os membros da família humana e o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo, como está bem patenteado no Preâmbulo.

Para concluir, apesar de a fraternidade estar inscrita nos principais documentos que norteiam a humanidade e ser um tema que não tem oposição na opinião pública, o certo é que ela continua a ser sistematicamente adiada. A isso não será alheio o facto de a fraternidade, para além dos textos legislativos, precisar também de ser reconhecida e aceite como imprescindível para o progresso dos povos, razão pela qual são precisos também líderes que coloquem em destaque o valor da fraternidade, como seja o caso de Ahmad Al-Tayyeb, Martin Luther King, Desmond Tutu, Mahatma Gandhi ou Jorge Bergoglio, só para dar alguns exemplos. Estes líderes conseguiram demonstrar que é possível um mundo melhor, mais habitável, e que este se pode conseguir através do diálogo social, como expressão de fraternidade.

Bibliografia

Impressa

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SÈRE, B. (2017). “L’amitié dans la pensée du millénaire médiéval: Tableaux d’une exposition”. Consecutio Rerum , 2 (3), 125-139.

TEPPA, S. (2012). “Fratello, fratellanza e ‘affratellamento’”. Historicά, 3, 273-285.

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