Qualidade Espiritual e Sanação

Qualidade Espiritual e Sanação 

A abordagem epistemológica[1] do ser humano, pelo menos nosso contexto ocidental, assistiu a uma substituição sucessiva de diversos modelos compreensivos da realidade, que foram dominando em cada contexto histórico-cultural.
E nem sempre, estamos em crer, estas transições foram ou são pacíficas e bem entendidas. Nem sempre a tradição, como processo normal de gerar e comunicar cultura, é valorizada corretamente e de modo construtivo, para a compreensão do ser humano.
Esta visão crítica da tradição tem as suas raízes bem antigas. Começou quando, na Grécia, se passou do mythos para o logos[2], dando origem à sucessão de diversos modelos reflexivos[3]. Do contexto grego-romano chegou-nos o homo politicus onde a polis é o horizonte de referência para a qual se orientava a ética[4], a religião[5] e o conhecimento[6].
A este sucedeu-se o homo religiousus medieval. Embora se trate de uma religiosidade percebida mais em contexto social que individual, procurava-se que a cidade terrena fosse um espelho, ainda que pálido, da Civitate Dei.
Com o advento da modernidade ­surgiu o homo sapiens, ainda que em tensão com o homo faber. O homo sapiens é entendido «no sentido racionalista, ou seja, como metáfora para o domínio da razão humana sobre todo o real. Neste sentido, encontra-se presente tanto na sua versão de ciência empírica como a de idealismo absoluto. Também aqui não se esqueceu a dimensão política, mas agora colocada ao serviço da razão universal e, em simultâneo, subjetiva»[7].
Do homo faber, do progresso industrial e tecnológico, emerge o homo communicans, o homo videns e, por último, o homo virtual. Em que o real nem sempre é físico — nas quatro dimensões do real físico — antes existe nos espaços virtuais gerados e subsistentes na interação das novas tecnologias electrónicas, onde só a ilusão do tempo e do espaço, ou melhor, da sua anulação parecem importar, ficando-se apenas pela representação virtual. Não já do real físico, mas do real abstrato e fabricável.
Neste contexto da modernidade, o homo scientificus do positivismo é um dos exemplos mais claros desta redução, simultaneamente, idealista e empirista da antropologia.
Mas a modernidade, com as suas tendências monolíticas e reducionistas, gerou uma crise, dando origem à pós-modernidade. E esta, entre outras coisas, põe em relevo aquilo que na modernidade esteve em falta: o ser humano não se pode definir univocamente, antes precisa de ser visto em diversas dimensões, todas elas imprescindíveis para a compreensão antropológica. Não de forma justaposta, mas integrada e relacionada.
Mas há uma visão fundamental, que antecede e torna possível todas as outras — e aqui somos muito devedores à reflexão de João Duque —  que é a do homo credens. João Duque, na sua obra, faz convergir a partir daqui, de forma orgânica e equilibrada, todas as dimensões do ser humano, em ordem a uma antropologia[8] integral. E supera todo tipo de dualismos, dando resposta às posições filosóficas da pós-modernidade. Pelo menos as mais significativas.

Tradição

Nos tempos que correm, fortemente influenciados pela modernidade já superada, as tradições são postas em causa, pois crê-se que com o progresso científico-técnico o ser humano, recorrendo apenas à razão, pode encontrar em si, e de forma autónoma, a totalidade das suas motivações e, por isso, todo o conhecimento. Mas isto, que é um preconceito contra a tradição, redunda na negação daquilo que quer afirmar: não há lugar à verdade, mas sim à ideologia, com a consequente perda de liberdade e a desumanização[9].
O saber em si não é o que acontece primeiro, nem o fundamento último de tudo, pois o saber da possibilidade de saber, que o mundo existe e habitamos nele, que a linguagem me permite interagir no e com o mundo e falar a outros deste mundo, não se sabe nem se demonstra, antes crê-se. O que implica que, antes de qualquer operação de interação e conhecimento, o ser humano recebe uma linguagem, sobretudo da sua cultura e do seu contexto, que lhe oferece uma estrutura possibilitadora de tudo o demais. O ‘pensar’ absolutamente subjetivo, sem recurso a nada exterior, não é possível.
Wittgenstein refere o “leito da fé” para significar tudo o que precede o indivíduo e que o sujeito terá que acolher, como condição de possibilidade da sua mesma subjetividade. Ou seja,  em termos epistemológicos, o crer antecede o saber e o fazer. A confiança pessoais e a linguagem cultural são, então, a condição imprescindível para que o ser humano seja que é, tenha um sentido, um percurso vital. Claro que somos livres: podemos rejeitar, transformar, assimilar e transmitir criativamente o que recebemos, mas só se primeiro acolhermos. A dinâmica da construção da identidade própria implica todas as dimensões do ser humano, onde a dimensão crente — que acolhe o dom oferecido — é a mais ampla, originária e fundamental[10].
A transmissão de verdades mais não é que o reconhecimento de que o ser humano é um «ser da tradição»[11], sendo esta constitutiva da cultura humana, na medida em que acolhe, transmite, destrói e cria novas tradições, ou melhor, reorganiza e faz evoluir a tradição. Aqui ressalta a linguagem, ou linguagens, como elemento de destaque, porque é ela que permite a transmissão. A linguagem é, então, em simultâneo, meio de transmissão cultural e elemento constitutivo da tradição. Esta, por seu turno, dá resposta cultural a duas limitações do ser humano: a finitude e a necessidade de não se começar sempre do início, mas de assumir e acolher as descobertas precedentes para, sobre elas, construir e elaborar novas conquistas. A linguagem permite que se realizem processos de transmissão, de sanação, onde é entregue ao indivíduo algo que o transcende no tempo e no espaço, e que ele acolhe, fazendo-o seu, para, por seu turno, na medida em que acolhe, transmitir. É neste quadro conceptual que entendemos a tradição como transmissão e, por isso, sobreposto conceptualmente a sanação, já que o entregar e receber não é um ato de alguém sobre alguém, mas uma interação de, pelo menos, dois sujeitos, que ativamente se empenham no mesmo processo.  É um processo comunitário, em ordem a uma libertação total do indivíduo, por isso, sanante.
As verdadeiras tradições assumem um processo libertador e orientador, já que «diante de uma multidão de possibilidades de perceber, pensar e agir que pode paralisar o homem, coloca-lhe à disposição determinados modelos ou “guiding patterns” de perceber, pensar e agir»[12], bem como um ambiente comunitário gerador de instâncias de controle e garantes da tradição normativa, num determinado contexto cultural. Este processo é evolutivo porque constituído, em simultâneo, pelos transmissores e pelos receptores que, posteriormente, se assumem também como transmissores, fazendo de cada sujeito, em simultâneo, curador e curado.
Este processo afeta a personalidade, pois o facto de um indivíduo estar numa determinada comunidade fundada na tradição, e de esta o influenciar, significa duas coisas[13]: que a tradição possibilita o desenvolvimento da individualidade e que pode também atrofiar o desenvolvimento livre. A tradição, como «destino e desafio»[14], postula a assimilação livre e inteligente da tradição, com a consequente atitude crítica, pois a assimilação pessoal é sempre interpretação. Esta resulta da interação daquilo que é transmitido, ou ensinado, com as experiências pessoais, o que sintetiza a possibilidade de continuidade da transmissão e a sua inovação. Razão pela qual há sempre latente uma certa conflitualidade nestes processos. 
O pensar saudável tem, agora, que assumir este facto, integrá-lo. A reflexão que se segue “poderá mostrar que eles [os diversos modelos], sendo embora antagonistas, são talvez complementares; […] que eles são susceptíveis, por conseguinte, de serem integrados sem, para tanto, entrarem em conflito mutuamente devastador e mortífero; que eles são capazes de funcionar, num verdadeiro ritmo histórico, uns como lastro, que dá estabilidade ao navio, outros como motor que o faz andar; que eles constituem campo de jogo passível de regras objectivas, de tipo racional e de relação” [15]. Por último — continua Manuel Antunes —, “a terceira tarefa [depois de destruir e assumir] decorrerá, lógica e fácil: superar. Superar a estreiteza do esquematismo pessoal, superar a estreiteza de todos os esquematismos em geral. Aceitando que a inteligência seja medida pelo real sem excluir o possível. Recusando entregá-la, de mãos e pés atados, ao caprichismo do desejo e às palpitações do irracional. Abrindo àquilo que a funda, justifica a vida e dá sentido à História”[16]. A confiança pessoal e a linguagem cultural são o solo natural que possibilita que cada pessoa seja quem é, no seu percurso vital.
E é este um dos maiores contributos que a crítica da pós-modernidade sobre a modernidade nos pode dar: um indivíduo totalmente autónomo, fechado sobre a sua razão, não existe, é uma ilusão. Mas também não podemos ficar encerrados na radical imanência  do horizonte último de toda a crença.
A transcendência liberta-nos e faz com que cada cultura particular seja criadora e libertadora de todo o sentido. A possibilidade de sermos interpelados de forma absoluta, com a constituição de uma certeza fundamental, ou uma base sobre a qual se possa construir todas as outras dimensões, é posta de parte pela maioria dos pensadores da pós-modernidade. É certo que a transcendência, porque transcende, só pode ser apreendida por cada pessoa no aqui e agora da sua história, por isso limitado e incompleto. Mas é parte integrante do homo credens a aceitação dessa finitude, que nos determina como seres de acolhimento e não como donos e senhores da realidade.
Assim, a pós-modernidade abriu-nos a possibilidade de voltar a pensar a pertinência originária do crer, mas ficou com o caminho incompleto, na medida em que reduziu a produção de sentido à imanência do mundo, encerrando-se na mera realidade do ser humano. Não considerou, esqueceu, a dimensão escatológica do crer, que a nosso ver, é a dimensão mais determinante.
O crer inaugura uma dimensão excessiva em relação à produção de sentido. Na dinâmica do crer, o sentido, mais do que produzido, é acolhido.
O crente, na sua acepção mais genérica, é todo aquele que reconhece, contempla, se espanta e aceita este estatuto de “ser mistério”, a ontologia de “ser dado”. Aceita que o dom originário, embora compreendida e aceite no seu âmago e nas suas consequências, nunca será totalmente captada e dominada pelos saberes humanos, quer pela ciência quer pela práxis: apenas poderá ser acolhido pelo homo credens como algo imerecido, e ao mesmo tempo excessivo em relação a tudo o que sabe e faz.
O ser humano crente é o que sabe como crente, sabe o mundo e o sentido de forma crente, por isso age como crente. O crente sabe-se e sabe o mundo como crente quando se aceita e aceita o mundo como originados e não como origem e fim em si mesmos, por isso o saber do crente é um saber de esperança. E porque se descobre e acolhe como dom gratuito, dá-se aos demais de forma gratuita, com fundamento fora de si — no Outro — pelo que o saber crente gera a ação caritativa.
Pelo que até aqui vimos, podemos considerar que o homo credens é a dimensão basilar de uma compreensão assertiva do ser humano, e a crença — a espiritualidade —  não pode ser considerada, como o tem sido até aqui, como uma dimensão ao lado das outras, muitas vezes ‘arrumada’ na esfera do religioso. Já não faz sentido a compreensão antropológica setorizada nas diversas dimensões do ser humano. Podemos fazer esse exercício de compreensão de forma académica, mas só para facilitar a reflexão e a linguagem, nunca como modelo capaz de dizer e compreender o ser humano.
No processo crente precisamos, por fim, de integrar a hermenêutica[17] — que situa o crer numa tradição, numa cultura e na finitude do processo histórico-cultural do ser humano; e a metafísica — que não limite o crer ao horizonte cultural, antes o percebe em relação com o excesso que o habita por dentro.
Só assim nesta recepção é que nos realizamos como seres livres, que recebemos o dom como sentido e o atualizamos no modo de crer, porque sabemos, agimos e esperamos para além do aqui e agora.

Consciência histórica

É aqui que o facto de sermos devedores de uma tradição, a Hospitalidade, nos torna responsáveis — capazes de responder por nós e pelo que de nós depende — e capazes de pensar e agir sobre o novo, criando novidade. Não, já, presos a meros dados empíricos, mas com eles refletir, ver outras possibilidades, e fazer emergir novos significados que nos são dados pela interação do hoje com a história, assumindo o passado e perspetivando o futuro. Um futuro que seja mais saudável, mais humano e, por isso, pleno.
É neste quadro que consideramos que a Hospitalidade aporta algo de único no campo da assistência sanitária, desde logo pelo modelo referencial que preconiza. Mais, na medida em que este modelo for acolhido e implementado, iremos possibilitar a transmissão da sanação àqueles que connosco contactarem. Mais, na medida em que formos instrumentos de sanação, nós próprios ficaremos mais curados.

Hospitalidade e Nova Evangelização

E aqui emerge uma luz essencial no contexto eclesial que vivemos, o da nova evangelização, que de nova só tem o nome porque é fazer aquilo que sempre se fez, e que Cristo nos mostrou e em Si realizou: anunciar a Boa Nova, curar os que sofrem e dar vida em abundância.
Pois Deus, numa relação de amor salvífico com o homem, sai do Seu mistério, revelando-se. A pessoa, convertendo-se, responde com a fé à verdade transformadora. Por isso, continua a ser tarefa prioritária da sanação dizer, hoje, a Revelação.
A Palavra de Deus apresenta-se, no Antigo Testamento, sob muitos aspetos, mas mantém a característica de ser uma palavra que, simultaneamente, revela e esconde: não se deixa reduzir a simples significados verbais. No Novo Testamento, esvai-se a diferença de níveis de comunicação entre Deus e o homem, provenientes das diferentes naturezas.
«Sabendo Jesus que chegara a Sua hora de passar deste mundo para o Pai, Ele que amara os Seus que estavam no mundo, levou até ao extremo o Seu amor por Eles»(Jo 13, 1). E o auge da doação: a palavra articulada faz-se palavra imolada. Na Cruz, Jesus Cristo mostra o amor de Deus aos homens; a palavra de Deus esgota-se até ao silêncio. A hora da morte e do silêncio é a suprema expressão do amor oferecido à humanidade. Aquilo que na comunicação divina é incomunicável diz-se agora com os braços estendidos e o corpo dilacerado.
No acontecimento ressurreição — onde a humanidade de Cristo se torna veículo para a expressão e manifestação da Sua divindade —, Cristo ratifica-se como código e como chave interpretativa do código que permite penetrar a mensagem divina sem equívocos.
À luz deste acontecimento, a relação entre o homem e Deus é, pois, reflexo do diálogo trinitário, gerador de comunhão amorosa, na qual o homem é chamado a participar. Apesar da dificuldade do cidadão hodierno — fechado sobre si e incapaz de se situar perante o dom —, é preciso continuar a anunciar o Deus que se fez homem e que diviniza a humanidade pela comunicação do seu ser pessoal.
Anunciar Deus de forma sanante leva a descobrir, em conjunto com os vários saberes, outros métodos de comunicar, que integrem a fé e evitem o absurdo. Processo capaz de ser realizado por aqueles que falam como se vissem o invisível, sempre em busca de novos métodos de contar a verdade, marcados sempre pelo imprevisível.
Nesta dinâmica, cada um «acabará por sentir, no mais íntimo da sua humanidade, o apelo duma Proposta transcendente, que foi por vezes rejeitada enquanto expressa em paradigmas ultrapassados, mas que surge agora, nova e disponível, para a reinvenção do futuro»[18]. De um futuro com um Deus tão transcendente que não se deixa reduzir a simples verbalizações que aprisionam, mas tão próximo que chama cada pessoa, do âmago de cada cultura, a uma sanação libertadora: oferecendo-lhe o sentido, como dom.

Sentido

É relativamente recente, na história do pensamento, a abordagem do problema do sentido como uma questão separada. A normalidade era considerar que a referência sobre o ser implicava, necessariamente, a referência ao sentido. Na metafísica clássica, o que se considerava ser era o que por sua vez possuía sentido, de tal modo que o ser e sentido deste equivaliam aproximadamente à mesma coisa.
Mas atualmente, a questão do sentido une todas as pessoas; é a profunda inquietação sobre o sentido da vida, em que toda a Humanidade está unida. A interrogação sobre a condição humana revela o homem como uma interrogação para si mesmo.
Perante o sofrimento, de que a morte é o maior expoente, e o problema do antes e do depois, não se pode deixar de colocar a questão do sentido. E quando a sede de sentido se agudiza, pode chegar-se ao desespero, ao suicídio como expressão máxima da falta de saúde, de ausência de sanação.
A postura que reconhece o homem sedento de absoluto, que não se realiza por esta vida, sem contudo negar a possibilidade de vir a realizar-se. Perante a morte, a radicalidade do problema humano faz emergir na consciência a aspiração que habita o homem: realizar-se infinitamente. «Queria era sentir-me ligado a um destino extrabiológico, a uma vida que não acabasse com a última pancada do coração»[19], escreve Miguel Torga.
A partir da morte pode reconhecer-se, também, a impotência do homem para construir sozinho a sua realização. «O homem é um animal compartilhante. Necessita de sentir as pancadas do coração sincronizadas com as doutros corações, mesmo que sejam corações oceânicos, insensíveis a mágoas de gente. Embora oco de sentido, o rufar dos tambores ajuda a caminhar. Era um parceiro de vida que eu precisava agora, oco tambor que fosse, com o qual acertasse o passo da inquietação»[20]. É aqui se abrem duas hipóteses: ou o homem reconhece que a vida terrena — projeto e aspiração a ser mais — tem sentido e abre a possibilidade da esperança de um futuro transcendente; ou aceita que a vida não tem sentido e é o desespero total.
A descoberta do sentido para a vida, integrando o sentido do sofrimento, revela a precariedade e a finitude de uma vida sobre a qual assenta o desejo de absoluto que se espera. É a descoberta da liberdade ansiada, aquela que se tem devido a uma liberdade transcendente. O desejo de liberdade infinita do homem dá lugar à descoberta da condição de possibilidade da liberdade humana: Deus. A realização humana surge a partir do ser pessoa, da relação.
Mas o sentido é um dom, oferecido pelo mistério do Verbo encarnado. «Na realidade, o mistério do homem só no mistério do Verbo encarnado se esclarece verdadeiramente. […] Cristo, novo Adão, na própria revelação do mistério do Pai e do seu amor, revela o homem a si mesmo e descobre-lhe a vocação sublime»[21]. O mistério do homem revela-se através do mistério de Cristo, chamado a participar da sua filiação. Quando o homem descobre que é amado pelo Pai, em Cristo e através do Espírito, revela-se a si mesmo, descobre a grandeza de ser objecto da benignidade divina, receptor do amor do Pai revelado em Cristo. O mistério trinitário é o único capaz de realizar o homem, é o “mistério iluminador” do sentido. A expressão desse mistério faz-se pela vivência da comunhão, onde o ser «não sem os outros» (Michael de Certaux) impele para a solidariedade e para o diálogo. Miguel Torga escreve que «a Bíblia, o livro dos livros, nos ensina que não há homem sem homem, e que o próprio Cristo teve, a caminho do Calvário, a fortuna dum cireneu para o aliviar do peso da cruz (a dor incurável da solidão). Para mim, pelo menos — continua Torga —, feito dum barro tão frágil e vulnerável, que necessito de ser amado durante a vida e acalentar a esperança de continuar a sê-lo depois da morte»[22].
Jesus Cristo, através da sua vida e pregação, é o mediador do sentido, o único intérprete dos problemas humanos. Em Cristo, o homem pode compreender, realizar e superar-se continuamente.
O homem, em Jesus Cristo, pode ver, por fim, realizada a sua identidade. O ser insaciado sacia-se. A essência e a existência humanas têm um espaço de convergência e realização: Jesus Cristo.

Síntese:

Preconizar um modelo assistencial denominado holístico permite pensar o ser humano sem estreiteza de horizontes. Mais, a assunção de uma antropologia não encerrada apena na e pela razão abre a possibilidade de a pessoa ser mais — é também aquilo que acolhe —, e de dar mais do que tem — dá aquilo que recebeu e incorporou na sua existência, lhe deu sentido.
A sanação, como conceito teológico basilar para compreender a missão da Hospitalidade, não só permite, como obriga, a que exista uma prática antropológica equilibrada, digamos sanada, para que a hospitalidade seja sanante, para curadores e curados!


[1] A epistemologia estuda a origem, a estrutura, os métodos e a validade do conhecimento, pelo que também é conhecida como “Teoria do Conhecimento”. É o estudo crítico dos princípios, hipóteses e resultados das diferentes ciências, procurando determinar-lhes a origem lógica, o valor e o alcance objetivo [Cf. Academia de Ciências de Lisboa, Dicionário da Língua portuguesa contemporânea, Lisboa 2001].
[2] Cf. Pottmeyer, Hermann, “Tradição”, in LATOURELLE, R.; FISICHELLA, R., Dicionário de Teologia Fundamental, ed. Vozes, Petrópolis 1994, 1015.
[3] Seguimos muito de perto o pensamento do teólogo João Duque. Cf.  Duque, João, “Evangelização e mutação cultural. Apologia da cultura táctil”, Theologica, 36 (2001) 1, p. 15-36; Idem, “O conflito das linguagen”, Theologica, 42 (2007) 1, p. 39-52; Idem, “Textos e identidades”, Theologica, 38 (2003) 1, p. 17-31; Idem, Cultura contemporânea e cristianismo, ed. Universidade Católica Portuguesa, Lisboa 2004; Idem, Dizer Deus na pós-modernidade, ed. Universidade Católica Portuguesa/Alcalá, Lisboa 2003; Idem, Homo Credens. Para uma Teologia da Fé, ed. Universidade Católica Portuguesa, Lisboa 2002; Idem, O excesso do dom, ed. Universidade Católica Portuguesa/Alcalá, Lisboa 2004; Idem, “O acesso a Jesus num contexto de disseminação do crer”, Didaskalia 36 (2006) 2, p. 151-162;  Idem, “Para uma estética da fé cristã na modernidade tardia”, Didaskalia 35 (2005) 1-2, p. 617-632; Idem, “Texto, identidade e alteridade”, Didaskalia 33 (2003) 1-2, p. 365-381; Idem, a transparência do conceito. Estudo para uma metafísica teológica, ed. Didaskália, Lisboa 2010.
[4] Ética entendida como conjunto de princípios morais e de conduta pelos quais se rege o indivíduo na sua vida ou no desempenho de uma profissão ou atividade [Cf. Academia de Ciências de Lisboa, Dicionário da Língua portuguesa contemporânea, Lisboa 2001].
[5] Religião: sistema estruturado de doutrinas, crenças, regras e práticas de uma determinada comunidade de pessoas que instituem um determinado tipo de relação com o puder superior, sobre-humano [Cf. Academia de Ciências de Lisboa, Dicionário da Língua portuguesa contemporânea, Lisboa 2001].
[6] O conhecimento é a formação de uma ideia, de uma noção da existência, da natureza, do valor de alguém ou de alguma coisa [Cf. Academia de Ciências de Lisboa, Dicionário da Língua portuguesa contemporânea, Lisboa 2001].
[7] Duque, João, “Homo credens. Para una teología de la fe”, in AA.VV., Antropología y fe Cristiana, ed. Instituto Teologico Compostelano, Santiago de Compostela 2003, 223.
[8] Antropologia é a ciência que estuda o homem, a sua origem e evolução, os seus caracteres físicos ou psíquicos, as suas tendências sociais, as suas relações com o meio ambiente e que se ocupa igualmente das sociedades humanas e das práticas e produções socialmente adquiridas e transmitidas  [Cf. Academia de Ciências de Lisboa, Dicionário da Língua portuguesa contemporânea, Lisboa 2001].
[9] Cf. Pottmeyer, Hermann J., “Tradição”, 1015.
[10] As ideias que expressamos neste texto acerca do homo credens são retiradas de Duque, João, Homo Credens. Para uma Teologia da Fé, ed. Universidade Católica Portuguesa, Lisboa 2002 e do resumo desta obra que o Autor publicou em Duque, João, “Homo credens. Para uma teologia de la fe”, in AA.VV., Antropología y fe Cristiana, ed. Instituto Teologico Compostelano, Santiago de Compostela 2003, 223-236.
[11] Pottmeyer, Hermann J., “Tradição”, 1015.
[12] Ibidem, 1016.
[13] Cf. Ibidem.
[14] Ibidem.
[15] Antunes, Manuel — Acertar a mentalidade, ed. Verbo, Lisboa 1972, 101.
[16] Ibidem, 102.
[17] A hermenêutica estuda a teoria da interpretação, que pode referir-se tanto à arte da interpretação ou à teoria e treino de interpretação. Engloba não somente textos escritos, mas também tudo que há no processo interpretativo. Isso inclui formas verbais e não-verbais de comunicação, assim como aspetos que afetam a comunicação, como preposições, pressupostos, o significado e a filosofia da linguagem e a semiótica.
[18] ARCHER, Luís, “Fé experiencial e tecnologismo do futuro”, in AA.VV. — Fé e Cultura para o ano 2000, ed. Communio, Lisboa 1995, 94.
[19] Torga, Miguel, Diário I, ed. Autor, Coimbra 1941, 27.
[20] Ibidem, Diário IX, ed. Autor, Coimbra 1977, 76-77.
[21] GS 22.
[22] Torga, Miguel, Diário XVI, ed. Autor, Coimbra 1993, 93.

A linguagem analógica: o seu contributo à Teologia

A dimensão do mistério, sempre presente na experiência religiosa, agudiza-se quando tentamos falar sobre ela. Não poucas vezes faltam-nos as palavras para nos expressarmos e transmitirmos as nossas experiências. Perante esta dificuldade, Wittgenstein defende que o que não se pode dizer com clareza deve ficar reduzido ao silêncio. Cairíamos então num ateismo semântico.
Para tentar solucionar esta dificuldade vamos, neste trabalho, lançar mão da analogia e ver o contributo que ela pode dar à Teologia.
I. A METÁFORA
O homem é, por si, um ser sociável. Precisa dos semelhantes para se realizar. Para entrar em contacto com eles usa a linguagem, a fim de comunicar as suas experiências. Mas o universo das experiências “leva-nos à beira do mistério último não susceptível da experiência directa, apenas indirecta ‘em, com e sob’ a nossa experiência quotidiana. Mas quando tentamos descrever este mistério falta-nos a linguagem. A experiência tem uma última dimensão inefável”[1].
O homem, espontaneamente, relaciona as coisas entre si por imagens, comparações e símbolos. Com estes pretende exprimir as suas experiências e a sua situação no mundo.
A importância da analogia, ou pensamento analógico, vem do facto de se chegar a alguma coisa geral, por indução, a partir de coisas particulares e semelhantes. Na analogia estão presentes a unidade e a pluralidade, a identidade e a diferença. Como se vê possui uma estrutura dialéctica.
A analogia fundamental, em que todas se apoiam, é a analogia entis. A inteligência humana está aberta ao infinito. Na afirmação do particular inquieta-se, pois reconhece nele o infinito. É pela existência do finito que reconhece a existência do infinito, mas nota-se que são de maneira diferente e, ao mesmo tempo, não tão diferentes. Se assim não fosse não poderiam estar presentes no mesmo conhecimento: o conhecimento humano.
“Metamorfizar correctamente é ver – contemplar, ter olhar para – o semelhante. A epífora é este olhar e este lance de génio: o não ensinável, o não adquirível”[2].
“A metáfora é por excelência um tropo por semelhança”[3]. É esta que revela “a estrutura lógica do ‘semelhante’, porque, no enunciado metafórico, o semelhante é apercebido  apesar da diferença, apesar da contradição”[4]. É esta a estrutura lógica que dá vida à metáfora, que lança “o impulso da imaginação num ‘pensar mais’ ao nível do conceito”[5], pois “as significações não são fórmulas estáveis mas dotadas de uma capacidade e de um dinamismo, que lhes permitem servir outros referentes e cooperar na inovação semântica”[6].
A metáfora é considerada como uma forma de analogia[7]. E o conhecimento por analogia é um conhecimento “do semelhante pelo semelhante que detecta, utiliza, produz similitudes de maneira a identificar os objectos ou fenómenos que percebe ou concebe”[8].
Para se verificar um pensamento o mais exacto possível deve “haver uma ideia dominante, alguma coisa que corresponda à característica principal do objecto e que dê unidade ao que é vário e disperso”[9].
Em suma, nos conceitos análogos, apesar de existir diferenças, há também um enlace que possibilita o emprego das palavras com sentido e significado[10]. A linguagem analógica ocupa o lugar intermédio entre o equívoco e o unívoco e expressa uma semelhança que inclui a igualdade na diferença. É uma semelhança de relações. “Recorre de um modo novo à dialéctica da quotidiano e do estranho, característica da linguagem metafórica”[11].
II. A LINGUAGEM PARABÓLICA
De entre os problemas que hoje se põe à fé, a linguagem ocupa um papel de destaque. Quando nos exprimimos sobre esta corremos o risco de não sermos compreendidos – há algo que não funciona[12].
Para falarmos acerca da transcendência apenas nos podemos apoiar naquilo que lhe é secundário e subsequente[13]. Com a linguagem parabólica dá-se um contributo importante para que a experiência religiosa não fique sem voz. Esta permite que as palavras sejam utilizadas de uma nova maneira, que expressem algo de diferente. Não reproduzem apenas o objecto mas, acima de tudo, representam uma descrição criadora da realidade. Dão algo mais à realidade física que esta não possui[14]. Diz do mundo físico mais do que aquilo que é.
Se por um lado a experiência religiosa ultrapassa a pura inteligência e compromete a vontade, por outro é razoável. “A racionalidade verdadeira não reprime a analogia, alimenta-se dela ao mesmo tempo que a controla”[15].
Visto que Deus não é uma coisa do nosso mundo, em face de um termo estrangeiro, poderiamos dizer que este perdeu o significado. Mas não, na linguagem parabólica as palavras são elevadas[16].  Isto porque as palavras humanas e as divinas, da revelação, se fundem. Sem que as divinas deixem de o ser e as humanas percam o seu significado.
Se observarmos os resultados da filosofia da linguagem  e tomarmos a sério a força criadora da linguagem, “que não se limita a reproduzir a realidade da nossa experiência quotidiana e científica, mas que projecta o conjunto da realidade e a dimensão religiosa e a partir daí é capaz de chegar, mediante as metáforas, a uma nova realidade criadora e a expressar o novo, então encontramos a doutrina da analogia, que vem a ser a doutrina da linguagem da fé”[17].
Com isto não negamos a transcendência de Deus. Pois a linguagem sobre Ele deve ser capaz de mostrar ao mesmo tempo a distância e a proximidade – “aproxima Deus por via  analógica e, ao mesmo tempo, também criam distâncias. Entre Deus e o homem existe um abismo que o próprio Deus transcende ao dar, justamente com as imagens, a Sua presença”[18]. Deus é o totalmente outro.
A doutrina da analogia nasceu da ambição de abraçar numa única doutrina a relação horizontal das categorias com a substância  e a relação vertical das coisas criadas com o Criador[19]. A analogia, com efeito, “move-se ao nível dos nomes e dos predicados; ela é de ordem conceptual. Mas a sua condição de possibilidade está noutro lugar, na própria comunicação do ser. A participação é o nome genérico dado ao conjunto das soluções trazidas a este problema. Participar é, de um modo aproximativo, ter parcialmente o que o outro possui ou é plenamente”[20]. Ricouer acrescenta mais à frente: “no jogo do Dizer e do Ser, quando o próprio Dizer está a ponto de sucumbir ao silêncio, sob o peso da heterogeneidade do ser e dos seres, o próprio Ser relança o Dizer, em virtude das continuidades subterrâneas que conferem ao dizer uma extensão analógica das suas significações. Mas, no mesmo lance, analogia e participação são colocadas numa relação de espelho, correspondendo-se exactamente unidade conceptual e unidade real”[21].
Em resumo, podemos ver que a metáfora dá algo mais à linguagem que a realidade física não possui. Nomeadamente na experiência religiosa. Assim a palavra Deus “expressa a realidade de tal modo que faz brilhar no mundo ‘algo’ que é mais que o mundo”[22]. A linguagem sobre Deus converte o mundo em metáfora de Deus. É um chamamento a contemplar “o mundo como metáfora e as suas indicações, ou seja, a mudar o modo de pensar, crer e esperar”[23]. A analogia faz ver outro Mundo, outro Espaço e outra Vida[24]. 
III. A analogia hoje
Neste capítulo vamos abordar a questão da analogia baseada partindo da filosofia moderna.
É possível uma mudança profunda na doutrina da analogia se partirmos de um ponto diferente: a metafísica grega partiu do cosmos, nós vamos partir da filosofia da liberdade. “A questão de Deus não se decide na problemática da natureza, mas no debate em torno da liberdade do homem”[25].
A analogia constitui uma interpretação das experiências realizadas livremente. “A liberdade move-se em tensão entre o infinito e o finito, entre o absoluto e o relativo. Nós podemos distanciarmo-nos, no acto de liberdade, da experiência finita e condicionada, e concebe-la como tal porque nos projectamos até ao infinito e incondicionado”[26].
Nós só concebemos o finito, como finito, dentro de um horizonte infinito. Só no incondicionado concebemos o condicionado como tal. Todo o finito nos projecta para o infinito[27].
“Esta estrutura antecipativa da liberdade e da razão humana implica um conhecimento latente do incondicionado e o infinito, que se classifica como análogo”[28].
Tendo em conta que “a analogia do ser expressa o mais e o novo da liberdade frente à mera facticidade do mundo. Ela ilumina-nos para ver o mundo no horizonte da liberdade e entende-lo como âmbito da liberdade; ou seja, ajuda-nos a conceber o mundo como mundo histórico”[29]. Com esta visão da analogia podemos ver as várias possibilidades do real: o futuro. “Por isso uma doutrina da analogia assim renovada pode-se considerar como versão especulativa da forma linguística da metáfora e da linguagem figurada dos evangelhos”[30].
Se Deus for concebido como liberdade absoluta, em quem fazemos incidir a nossa liberdade finita e vemos o mundo como âmbito da liberdade, “não há possibilidade nenhuma de demonstrar Deus como necessário a nível conceitual. Deus como liberdade perfeita é mais que necessário; por ser livre, só pode ser conhecido em liberdade quando ele se abre livremente ao homem”[31].
Ao tentar conhecer Deus no horizonte da liberdade não estamos a especular abstractamente sobre Deus. Estamos, isso sim, a atender aos sinais que Deus revelou livremente no mundo e, à luz destes, conceber a realidade como espaço de liberdade e de história[32].
A doutrina da analogia permite-nos, a partir do testemunho bíblico, abrirmo-nos a uma nova realidade. Dá-nos uma linguagem que permite ao homem falar sobre Deus[33].
“Neste sentido, a analogia fidei implica a analogia entis ou da liberdade”[34]. Pois o possível é o melhor que o ser tem para dar.
Conclusão
além dos conceitos unívocos e equívocos, existem os análogos. São estes que permitem à linguagem expressar-se sobre o que é diferente da nossa realidade física.
Assim, a linguagem analógica dá à linguagem mais do que a realidade física possui. Permite ver no mundo mais do que ele é: converte-o em metáfora de Deus.
O homem sente em si o conflito do querer e aspirar ao mais, em conflito com a realidade que possui. Vê que o que o rodeia pode ser diferente. Mas a esta diferença encontra-a na liberdade.
Só na liberdade se encontra Aquele que se revelou livremente.
 Luís Miguel FIGUEIREDO RODRIGUES



[1]Walter KASPER,  El Dios de Jesucristo, “Verdad e Imagen” 89, Ed. Sígueme, Salamanca 19944, 110-111.

[2] P. RICOEUR, A Metáfora Viva, Ed. Rés, Porto 1983, 291-292.

[3] Idem, 260; Cf  92.

[4] Idem, 293- 294.

[5] Miguel BAPTISTA PEREIRA, Introdução à tradução portuguesa da Metáfora Viva de Paul Ricoeur, in P. RICOEUR, o.c., 37.

[6] Ibidem.

[7] Cf W. KASPER, o.c., 119.

[8] Edgar MORIN, O Método III. 3. O conhecimento do conhecimento/ 1, “Biblioteca Universitária” 44, Pub. Europa-América, Mem Martins 1987, 131.

[9] J. MENDES, Teoria Literária, Ed. Verbo, Lisboa 1980, 123.

[10] Cf  O. MUCH,  Doctrina filosofica de Dios, “Biblioteca de Teologia” 6, Ed. Herder, Barcelona 1986, 176; O. de la Brosse, Analogia, in A.-M. Henry. ph. rouillard (dir), Dictionnaire de la foi chrétienne, I, Ed. du Cerf, Paris 1968, 254.

[11] W. KASPER, o.c., 119; Cf 117.

[12] J. DANIÉLOU, Lenguage e fe, in AAVV, La fe hoy, “Biblioteca palavra”2 ed. Palabra, Madrid 1969, 141.

[13] Karl RAHNER, Curso fundamental da fé. Introdução ao conceito de cristianismo, Ed. Paulinas, S. Paulo 1986, 91.

[14] W. KASPER, o.c., 117.

[15] E. MORIN,  o.c., 133.

[16] J.-P. MANIGNE, Pour une poétique de la foi. Essai sur le mystère symbolique, “Cogitatio Fidei”43, Ed. du Cerf, Paris 1969, 120.

[17] W. KASPER,  o.c., 118.

[18] J. VLOET, O Símbolo e a nossa linguagem acerca de Deus, in “Communio”(Lisboa) 1(1989)6, 500.(499-508); Cf G. LAFONT, Analogie, in R. Latourelle – R. Fisichela Dictionnaire de Théologie Fondamentale, ed. du Cerf, Paris 1992, 10.

[19] Cf P. RICOUER,  o.c., 411-412. É o que se chama a onto-teologia.

[20] Ibidem, 414.

[21] Ibidem, 420-421.

[22] W. KASPER, o.c., 117; Cf Maria C. D. CARVALHO, Centralidade Cristológica do “Eschaton”. nos escritos de Hans Urs von Balthasar, “Biblioteca Humanística e Teológica” 6, ed. UCP / Fundação Eng. António de Almeida. Porto 1993, 133.

[23] W. KASPER, o.c., 118.

[24] Cf Manuel ANTUNES, Legómena. Ed. INCM, Lisboa 1987, 140-141.

[25] W. KASPER, o.c., 41; Cf J.L. LUCAS, Dios, horizonte del hombre, “Sapientia Fidei”3, ed. BAC, Madrid 1994.

[26] Ibidem, 123.

[27] Cf Supra p.?!??

[28] W. KASPER, o.c., 123.

[29] Ibidem, 123.

[30] Ibidem, 124.

[31] Ibidem, 124; Cf J.-P. MANIGNE, o.c., 121.

[32] Cf Ibidem, 124.

[33] A palavra Deus tem sentido.

[34] W. KASPER, o.c., 124.

S. João Bosco, visto por um Salesiano

Neste dia 31 de janeiro, dia litúrgico de S. João Bosco, 124 anos após a sua morte, quero fazer um convite aos meus amigos que se interessam por pastoral juvenil: ler as “Memórias do Oratório”, de S. João Bosco. 
Dom Bosco escreveu muito, sobre muitas coisas. Mas escreveu pouco sobre si mesmo. Ao contrário de alguns santos com uma extraordinária capacidade de pôr em palavras o seu mundo interior, D. Bosco era muito reservado e não era nada dado a disclosures. Por isso, este texto, em que D. Bosco narra a sua própria história torna-se um documento raro e precioso. 
Nestas “Memórias”, D. Bosco narra a sua história e a história da sua obra, de 1815 (ano em que nasceu) até 1855. Escritas com arte, com ritmo, é um texto que se devora rapidamente. Mas mais do que fazer uma biografia, Dom Bosco quer apresentar um projecto de pastoral juvenil. Narrando as suas vivências como jovem e como sacerdote que exerce o seu ministério no âmbito da pastoral juvenil, Dom Bosco encontra uma maneira ágil e atraente de sintetizar a sua proposta pastoral.
D. Bosco acaba por escrever este relato por pressão do Papa Pio IX. Mas também porque sente que estas “Memórias” poderão ser úteis para aqueles que se juntaram a ele na paixão educativa e evangelizadora (ou seja, para nós também).
Para os conhecedores de Dom Bosco é texto é interessantíssimo. Mas julgo que para todos aqueles que querem anunciar o Evangelho da vida aos jovens do século XXI, este texto, escrito no século XIX, pode ser bastante estimulante.
A edição que agora saiu foi preparada por Aldo Giraudo, um dos maiores especialistas sobre vivos sobre Dom Bosco. A ampla introdução ajuda-nos a compreender melhor o género literário da obra; as notas generosas ajudam-nos a conhecer o mundo político, social, eclesial, ideológico onde decorre a acção.
Contextos
Apesar da distância que nos separa da Turim da primeira metade do século XIX, há muitas semelhanças no contexto.
Temos uma juventude em mutação acelerada e em situação de emergência educativa. No século XIX era o impacto da industrialização e da urbanização. Hoje é o choque com a cultura pós-moderna.
E temos também uma Igreja sem grandes respostas. Hoje como ontem, sentimos em Igreja que temos no Evangelho a resposta que pode devolver vida, beleza e sentido à vida dos jovens. Mas sentimos também que não encontrámos ainda as mediações necessárias e suficientes que façam a ponte entre o Evangelho e os jovens.
As respostas
Ao ler as “Memórias do Oratório” é possível encontrar várias respostas aos desafios pastorais que foram válidos na vida de Dom Bosco e que são válidos hoje também.
O sentido vocacional do educador-evangelizador. Ser educador-evangelizador (para Dom Bosco a evangelização faz-se com a educação) não é um emprego, não é um acidente de carreira. Nem sequer é uma escolha pessoal. Cada um de nós está neste lugar eclesial por chamamento de Deus. Isso gera um sentido de grande responsabilidade. Mas também uma serenidade interior muito grande. Nesta aventura de evangelizar os jovens, não somos nós os protagonistas. O papel principal é de Deus. Foi Ele que nos chamou. É Ele que nos guia, que nos inspira, que nos dá coragem.
A compaixão. Hoje como ontem a maneira como olhamos para o mundo dos jovens não é neutro. Olhamos com o mesmo olhar de Deus. Não somos burocratas que de dedicam a fazer análises da realidade, com os mais modernos instrumentos estatísticos. Somos pais e mães apaixonados que sentem como suas as dores do mundo juvenil. Somos homens e mulheres de fé que se deixaram contagiar pela vontade de vida abundante que Deus tem.
Não se deixar prender pela inércia eclesial. No tempo de D. Bosco, a rápida urbanização, os fluxos migratórios, a explosão de ideias, não pediu licença às estruturas eclesiais existentes. E D. Bosco soube encontrar soluções criativas e inovadoras para levar o Evangelho aos jovens. Hoje também nós temos a dificuldade de estar numa Igreja que pena em encontrar novos lugares e novos ritmos para evangelizar os jovens. As “memórias” ajudam-nos a ver como D. Bosco articula continuidade e inovação, sentido eclesial coragem criativa.
Humildade. A humildade corre o risco de ser uma daquelas virtudes típicas do “antigamente” mas que hoje, em tempos obcecados com a auto-realização individualista pouco crédito tem. D. Bosco realça, no seu percurso o papel da humildade. Longe de nós imaginá-lo como um quietista espiritual ou como alguém submisso ao peso das instituições ou das situações. D. Bosco insiste na humildade como a atitude que permite a descentração. “Ser humilde” é liberdade interior, não se prender consigo mesmo. É esta humildade que permite a criatividade, que permite desenvolver movas respostas. Sem perder tempo a ponderar o impacto que essas “aventuras” terão no bem-estar pessoal.
A santidade é possível. Contra os restos de jansenismo que ainda havia no seu tempo, contra o desânimo que dizia nada ser possível fazer desta juventude, D. Bosco acredita que a santidade, uma vivência da fé de alta qualidade, é possível. É urgente, na pastoral juvenil de hoje, recuperar esta convicção. Não apenas como declaração de princípio. Há que observar como se pode ajudar os jovens a operacionalizar essa santidade. Nas “Memórias”, D. Bosco recorda todos aqueles que o ajudaram a crescer em santidade e explicita os processos espirituais e pedagógicos que ajudarão os jovens rumo à santidade.
Itinerários que fazem crescer. Nas “Memórias” recordamos algo que a experiência confirma de mil maneiras: precisamos de itinerários de fé que façam efectivamente crescer. D. Bosco não usa a expressão “itinerários de fé”. Mas a intuição está lá.
Empowerement. Quando Joãozinho Bosco relata à família o sonho que teve aos nove anos (que de algum modo antecipa-sintetiza todo o seu percurso de vida) a avó, com sensatez e realismo, diz que não se deve dar crédito aos sonhos. Mas a vida de D. Bosco foi toda ela uma luta contra o realismo imobilista. Ele sentia que as constrições da realidade não deveriam ter a última palavra. D. Bosco desconhecia a expressão “empowerement” (duvido que soubesse inglês) mas era um grande adepto da realidade. Na sua vida pessoal e na sua estratégia de “gestão” dos jovens e dos colaboradores. D. Bosco ensina-nos que a fragilidade dos recursos pode ser contrariada cultivando a formação pessoal, melhorando as competências.
Finalmente…

Já escrevi muito e ainda fica muito por dizer a respeito dos méritos deste livro. Insisto no convite: ganha tempo a recuperar esta memória de um grande santo. 

P.e Rui Alberto, SDB

História do sr.jota

1
O sr.jota sempre foi um senhor de amor e amores.
Amar era o seu caminho, os amores as suas paragens.
Vivia para amar e amou muito, vezes sem conta e modo.
Gostava de amar e sempre que amava de maneira diferente, o seu amor ganhava um nome.
Não o nome da amada mas o nome da forma, da forma como e porquê amava…
Ao amor assolapado e imediato no qual dizia “vem rápido” chamou urgente.
Aquele amor que pedia para ficar e encostar apelidou de prioritário.
Ao outro, feito de admiração que aguentava a distância e de quando em vez o flirt dedicou-lhe a palavra platónico.
Ao amor que perdurava mesmo sem lugar ou tempo chamou independente…
Aquele que chegou e foi, nomeou-o de fugaz e àquele que idealizava nos seus sonhos, chamou isso mesmo: ideal.
E a todos os outros seus amores chamou um nome, um nome que os tornou ainda mais únicos e especiais.
De tal forma que, ainda hoje, o sr.jota trata-os pelos nomes… E nos seus nomes, reencontra o rosto das suas amadas.
O sr.jota foi feito para amar e ergueu-se amando.
Mas, no meio de tanto, sorriu quando se interrogou: alguma vez terá sido amado?…
Esperançado, retrocedeu no seu caminho, a correr loucamente à procura da alegria perdida de ser amado.
Ainda hoje não parou…
2
E correu, correu muito e loucamente.
Por montes e vales, cidades e aldeias, reencontrando as suas amadas, nunca se reencontrando.
A sofreguidão do regresso ofuscava o alento para discernir.
Continuou a correr, cada vez mais e com menos forças.
Até que parou.
Num pequeno banco perdido na sombra da árvore, repousou.
Fechou os olhos para mais tarde reabrir fruto de um raio de sol intenso.
Ergueu-se e percebeu: de tanto andar tinha regressado ao lugar donde tinha partido.
E sem saber se era o fim da sua corrida ou o princípio de um novo caminho, voltou a fechar os olhos.
E a sorrir para o raio de sol que o aquecia.

3
Enebriado pelo calor do raio de sol, reabriu os olhos tempo longo mais tarde.
Observou ao seu redor como um forasteiro chegado à cidade nova.
Tudo parecia novo, estranhamente novo, mesmo aquilo que tratava pelo nome.
Afinal reconhecia não conhecer o lugar de onde tinha partido.
E como o forasteiro na cidade nova, vagueou, deambulou à procura não sabe do quê, porquê e para quê.
Não buscava comida nem guarida, tão pouco companhia.
Apenas errava pela cidade… Até voltar ao banco perdido na sombra da árvore.
E naquele momento percebeu que tinha chegado a hora. De recomeçar.

4
Recomeçar experimentando uma certeza: tudo é impossível, nada é possível.
Invadia-o contradição acesa: sabia que não podia ficar, tinha que partir. Simplesmente a vontade não acompanhava a obrigação.
Por isso, foi ficando até não mais resistir.
Não se vive parado, tão pouco se sobrevive.
Vive-se caminhando, sobrevive-se por conta e risco.
E tendo-se muito em conta mas receio dos riscos que recomeçar acarreta…partiu!
Procurou firmeza no passo, não experimentou olhar para trás.
O tempo que passa serve para ensinar e não para chorar.
5
Partiu julgando-se livre do passado, livre para o futuro.
Esqueceu-se que o futuro não se ergue sem História, que a memória não se apaga por vontade.
E ao caminhar, cedo percebeu que tudo conhecia, tudo nomeava.
Apenas uma diferença: o sentimento divergia do conhecimento.
E os lugares, as pessoas foram-se renovando aos seus olhos, no seu coração…

6
Do lugar onde nasceu viu apenas uma cidade.
Sem afecto e estórias.
Da família herdada encontro-a pequena.
Sem a família escolhida, os amigos.
Do trabalho entendo-o como obrigação.
Algo que se faz sem sorriso.
E de tudo concluiu que o conhecimento renova-se, a memória também.
Logo perguntou: porquê tudo aparentar sem sentido?
A resposta não tardou.
Não basta saber ou recordar quando falta a emoção.

7
A emoção não se conquista, simplesmente existe.
A emoção não enriquece, simplesmente diferencia.
E ajuda a distinguir e escolher.
Na sua mente clarificou-se o pensamento.
O seu caminho, o novo caminho, não faria sentido sem emoção.
Parou imobilizando o passo e preferiu sentar.
Sentar para pensar.
E com o passar do tempo, simplesmente esperar que a emoção chegasse.
Agora uma certeza tinha.
A emoção é como o ar: não se vê, não se ouve, não se toca mas não se vive sem ela.

8
Sabia:

O conhecimento ajuda, a memória ensina.
A emoção singulariza. E une todas as partes do todo.
Permaneceu sentado à espera. Da chegada da emoção.
Que tardava, que tardou…
A emoção não chega por decreto. Apenas por sentimento.
E ninguém controla os sentimentos.
De tanto tardar, os dias foram passando.
Dia e noite, luz e sombra.
Mutações ora subtis ora bruscas. Nuances ou rupturas.
Mar de coisas nunca valorizadas, nunca reparadas.
E, na espera, foi percebendo:
Afinal o caminho não passa de um modo de ver…
Que se afunila com o tempo e com o medo.
Que nos faz perder o Bem que nos visita e não chega a entrar.
9
Sentado, esperava pela emoção.
Tardou a perceber que chovia.
Pequenas gotas frescas e transparentes.
Sentiu-se bem.
E relembrou do quanto gostava da chuva para caminhar.
E do vento a bater no rosto enregelado que fixava o sorriso.
E da sensação livre de caminhar sem destino ou tempo. Apenas prazer.
E de pensar livremente nos seus momentos únicos de isolamento.
E de sonhar fantasiosamente quando a dura realidade pedia alguma magia.
E relembrou tanto prazer anónimo experimentado.
Nem sempre valorizado!
10
Rebobinou toda a sua vida.
Pelo menos aquela que a mente alcança e suporta.
E reviveu fugazmente tantos destes momentos desvalorizados.
Envolto nos amores e Amor vividos, percebeu que não percebeu…
… O quanto feliz poderia ter sido.
Preocupado com os outros, esqueceu-se de si próprio.
E constatou.
Viver intensamente os momentos que são nossos não é egoísmo.
É também uma forma de ser feliz.

11
Reavivou a exigência (quem sabe) dialéctica dos seus amores.
Estes exigiam tempo e atenção. O centro do mundo.
Ele exigia-se capaz de todas as respostas. O suporte do mundo.
Para conquistar um sorriso, abdicou…
Para alcançar um carinho, dedicou-se…
Para não entristecer, recuou…
Para não magoar, aventurou-se…
Na certeza que só assim seria amado.
De tanto querer, julgou muito ter conquistado, tornado único e insubstituível.
Esqueceu-se da evidência.
Não se gosta verdadeiramente por aquilo que damos. Simplesmente por aquilo que somos.

12
Repetiu a pergunta “será que alguma vez fui amado?”
E voltou a repetir.
Fazendo desfilar na sua mente imagens atrás de imagens dos momentos vividos.
Até que parou quando, de olhos fixados no chão que pisa, encontrou uma simples folha branca.
Com uma frase escrita.
Nunca seremos amados se não nos amarmos a nós próprios.
E o amor próprio obriga-nos a ser quem somos.
Por inteiro!
E nunca o que querem que sejamos.
O primeiro é próprio de uma pessoa.
O segundo não passa de uma imagem.
Que se apaga quando a solidão chega.
E quando já não sabemos conviver com quem nos acompanha inevitavelmente:
Nós próprios!
13
Resgatou o papel do chão e dobrou-o.
Dobrou-o cuidadosamente para guardar no bolso do casaco.
Para reler sempre que quisesse.
E com medo.
Medo que a memória fosse curta. E se perdesse no primeiro amor encontrado.
Guardou.
E sentiu-se mais confortável. E robustecido.
Mas ainda sem vontade e forças para retomar caminho.

14
Sentia-se apatriado. Sem pátria ou destino.
Não porque faltasse caminho físico.
Esse estava ali, à sua frente.
Era só levantar e caminhar.
Mas porque ainda faltava a emoção, o condutor do coração.
Interrogou-se: o que fazer para chamar a emoção?
Sorrir? Saltar? Gritar? Suplicar?
Pensou horas a fio, tempo atrás de tempo.
Nada mais conseguiu do que uma simples evidência:
A emoção é o resultado da nossa aceitação.
Assim como somos!
E aceitou.
15
E ao aceitar, verificou que não tinha que partir.
Mas sim voltar a partir. Ou repartir.
E sorriu.
Porque repartir também é partilhar.
Dividir por todos oferecendo o bom que temos sem contas ou condições.
E emocionou-se.
Porque se sentiu capaz de dar, com vontade de dar, com talento para dar…
Chorou.
E as suas lágrimas fizeram uma pequena poça de água aos seus pés.
Olhou e viu-se reflectido.
E gostou do que viu. Assim, despido e sem truques.
Descobriu-se a si próprio.
E sorriu.
Sentiu-se bem e fortalecido.
16
Tão fortalecido que se levantou.
Com determinação e vontade.
Sobreviver é obrigatório.
Garantir que o corpo não dorme e a memória não se apaga.
Afinal, o que tinha feito.
Viver é necessário.
Alimentar o corpo, enriquecer o espírito.
O que descobria agora.
Conviver é felicidade.
Partilhar a vida com todos e consigo mesmo.
O que desejou ardentemente.
E sentiu-se firme. E emocionado.
E impelido. A voltar a partir.
Rasgou um sorriso.
E simplesmente retomou o seu caminho!

Fi

Santo Natal!

No Natal, que chega até nós pela beleza, pela grandeza, pela bondade, celebramos o Deus visível em Jesus Cristo. A manifestação da beleza, do belo, torna-nos felizes sem que devamos interrogar-nos sobre a sua utilidade. 
A glória de Deus, da qual provém toda a beleza, faz explodir em nós o deslumbramento e a alegria. Quem vislumbra Deus, sente alegria; e, nesta quadra, vemos algo da sua luz, que não nos obriga a nada: só a sermos verdadeiramente humanos!

Há dias em que me dá para o cinema!

Vi o “Habemus Papam” de Nanni Moretti, que tem a particularidade de “mostrar” um Vaticano em que, após a morte do Papa, é eleito um novo em Conclave. Até aqui tudo bem. Mas, na hora de ser anunciado, ele sofre um ataque de pânico, entra em depressão e precisa de fazer terapia psiquiátrica. O filme faz uma crítica à crise da Igreja no mundo de hoje. Houve momentos em que ri, para não chorar. A personagem do Papa “deprimido” tem um desempenho extraordinário e, apesar aparentar ser o mais doente, tem o discurso mais lúcido do filme!

Depois vi o “Dos Homens e dos Deuses” de Xavier Beauvais, onde se pode ‘tocar’ com o coração aquilo que é o discernimento, à luz do Mistério da Encarnação.

Foram momentos de síntese marcantes para mim, e como para recordar melhor é preciso algo que marque e que fique, elegi a música de Mercedes Sosa – “Todo Cambia”, que aparece no Habemus Papam. Mas é aí que, em ligação com o discernimento, está a solução, a meu ver: tudo muda, exceto o amor, melhor o Amor.

A propósito, ou não, d«O último segredo»

Ando há dias a terminar de ler um romance «A Alma das Pedras», de Paloma Sanchez-Garnica. Este romance versa sobre a relação entre as peregrinações a Santiago de Compostela e o culto velado ao herege Pelágio.
Logo que termine, vou ler «O último segredo» de José Rodrigues dos Santos.
Quem me conhece, poderá pensar: aquele homem não tem mais que fazer? Tanta literatura boa e anda por ali. Bom, também ando por aqui! Estes tipos de romances, de que o Código de Da Vinci é um bom ícone, são uma expressão de uma certa cultura pseudo-religiosa, que existe e está na mente e coração dos nossos contemporâneos, a quem devo, como crente, propor o sempre novo Evangelho. Daí que esta leitura é uma forma de conhecer e pensar sobre os modos como hoje o ‘religioso’ e as religiões são vistas.
Andava eu nestes pensamentos, quando vejo o texto do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura que transcrevo. É bom ouvir quem sabe, mesmo que queiramos fazer a experiência de «ir lá».

Uma imitação requentada: Nota sobre o romance “O último segredo”, de José Rodrigues dos Santos

O romance de José Rodrigues dos Santos, intitulado “O último segredo”, é formalmente uma obra literária. Nesse sentido, a discussão sobre a sua qualidade literária cabe à crítica especializada e aos leitores. Mas como este romance do autor tem a pretensão de entrar, com um tom de intolerância desabrida, numa outra área, a história da formação da Bíblia por um lado, e a fiabilidade das verdades de Fé em que os católicos acreditam por outro, pensamos que pode ser útil aos leitores exigentes (sejam eles crentes ou não) esclarecer alguns pontos de arbitrariedade em que o dito romance incorre.

1. Em relação à formação da Bíblia e ao debate em torno aos manuscritos, José Rodrigues dos Santos propõe-se, com grande estrondo, arrombar uma porta que há muito está aberta. A questão não se coloca apenas com a Bíblia, mas genericamente com toda a Literatura Antiga: não tendo sido conservados os manuscritos que saíram das mãos dos autores torna-se necessário partir da avaliação das diversas cópias e versões posteriores para reconstruir aquilo que se crê estar mais próximo do texto original. Este problema coloca-se tanto para o Livro do Profeta Isaías, por exemplo, como para os poemas de Homero ou os Diálogos de Platão. Ora, como é que se faz o confronto dos diversos manuscritos e como se decide perante as diferenças que eles apresentam entre si? Há uma ciência que se chama Crítica Textual (Critica Textus, na designação latina) que avalia a fiabilidade dos manuscritos e estabelece os critérios objetivos que nos devem levar a preferir uma variante a outra. A Crítica Textual faz mais ainda: cria as chamadas “edições críticas”, isto é, a apresentação do texto reconstruído, mas com a indicação de todas as variantes existentes e a justificação para se ter escolhido uma em lugar de outra. O grau de certeza em relação às escolhas é diversificado e as próprias dúvidas vêm também assinaladas.
Tanto do texto bíblico do Antigo como do Novo Testamento há extraordinárias edições críticas, elaboradas de forma rigorosíssima do ponto de vista científico, e é sobre essas edições que o trabalho da hermenêutica bíblica se constrói. É impensável, por exemplo, para qualquer estudioso da Bíblia atrever-se a falar dela, como José Rodrigues dos Santos o faz, recorrendo a uma simples tradução. A quantidade de incorreções produzidas em apenas três linhas, que o autor dedica a falar da tradução que usa, são esclarecedoras quanto à indigência do seu estado de arte. Confunde datas e factos, promete o que não tem, fala do que não sabe.

2. Chesterton dizia, com o seu notável humor, que o problema de quem faz da descrença profissão não é deixar de acreditar em alguma coisa, mas passar a acreditar em demasiadas. Poderíamos dizer que é esse o caso do romance de José Rodrigues dos Santos. A nota a garantir que tudo é verdade, colocada estrategicamente à entrada do livro, seria já suficientemente elucidativa. De igual modo, o apontamento final do seu romance, onde arvora o método histórico-crítico como a única chave legítima e verdadeira para entender o texto bíblico. A validade do método de análise histórico-crítica da Bíblia é amplamente reconhecida pela Igreja Católica, como se pode ver no fundamental documento “A interpretação da Bíblia na Igreja Católica” (de 1993). Aí se recomenda o seguinte: «os exegetas católicos devem levar em séria consideração o caráter histórico da revelação bíblica. Pois os dois Testamentos exprimem em palavras humanas, que levam a marca do seu tempo, a revelação histórica que Deus fez… Consequentemente, os exegetas devem servir-se do método histórico-crítico». Mas o método histórico-crítico é insuficiente, como aliás todos os métodos, chamados a operar em complementaridade. Isso ficou dito, no século XX, por pensadores da dimensão de Paul Ricoeur ou Gadamer. José Rodrigues dos Santos parece não saber o que é um teólogo, e dir-se-ia mesmo que desconhece a natureza hipotética (e nesse sentido científica) do trabalho teológico. O positivismo serôdio que levanta como bandeira fá-lo, por exemplo, chamar “historiadores” aos teólogos que pretende promover, e apelide apressadamente de “obras apologéticas” as que o contrariam.

3. A nota final de José Rodrigues dos Santos esconde, porém, a chave do seu caso. Nela aparecem (mal) citados uma série de teólogos, mas o mais abundantemente referido, e o que efetivamente conta, é Bart D. Ehrman. Rodrigues dos Santos faz de Bart D.Ehrman o seu teleponto, a sua revelação. Comparar o seu “Misquoting Jesus. The Story Behind who Changed the Bible and Why” com o “O Último segredo” é tarefa com resultados tão previsíveis que chega a ser deprimente. Ehrman é um dos coordenadores do Departamento de Estudos da Religião, da Universidade da Carolina do Norte, e um investigador de erudição inegável. Contudo, nos últimos anos, tem orientado as suas publicações a partir de uma tese radical, claramente ideológica, longe de ser reconhecida credível. Ehrman reduz o cristianismo das origens a uma imensa batalha pelo poder, que acaba por ser tomado, como seria de esperar, pela tendência mais forte e intolerante. E em nome desse combate pelo poder vale tudo: manobras políticas intermináveis, perseguições, fabricação de textos falsos… Essa luta é transportada para o interior do texto bíblico que, no dizer de Ehrman, está texto repleto de manipulações. O que os seus pares universitários perguntam a Ehrman, com perplexidade, é em que fontes textuais ele assenta as hipóteses extremadas que defende.

4. Resumindo: é lamentável que José Rodrigues dos Santos interrogue (e se interrogue) tão pouco. É lamentável que escreva centenas de páginas sobre um assunto tão complexo sem fazer ideia do que fala. O resultado é bastante penoso e desinteressante, como só podia ser: uma imitação requentada, superficial e maçuda. O que a verdadeira literatura faz é agredir a imitação para repropor a inteligência. O que José Rodrigues dos Santos faz é agredir a inteligência para que triunfe o pastiche. E assim vamos.
Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura
© SNPC | 23.10.11

Credo Missionário

1 – Cremos que Deus nos chamou e nos enviou a anunciar o Evangelho
      de seu Filho a todos os pontos da terra.
2 – Cremos que todos os baptizados, membros da Igreja, são
       missionários e missionárias por vocação.
3 – Cremos que a missão é a resposta ao plano de Deus, que no seu
        imenso amor e vontade, quer que todos conheçam a Verdade.
4 – Cremos que a vontade de Deus é que todos acreditem em Jesus Cristo
       Seu único Filho, se salvem e tenham a vida eterna.
5 – Cremos que podemos ser missionários sem sair da nossa aldeia ou
       da cidade, pois o nosso país é terra de missão.
6 – Cremos que como seguidores de Cristo, devemos comportar-nos
       de maneira firme e digna da vocação a que fomos chamados.
7 – Cremos que o mundo necessita de ver e sentir o nosso testemunho
       de amor, de esperança e de alegria por sermos cristãos.
8 – Cremos que o Espírito Santo nos dará energia, vontade e imaginação
       para lutar contra a corrente adversa e enfrentar perseguições.
9 – Cremos que os cristãos, tal como Jesus, são chamados a caminhar na
       História ao lado de todos os que sofrem.
10 – Cremos que a Virgem Maria caminha connosco, transmitindo ao
         nosso coração o que disse nas Bodas de Cana: “Fazei tudo o que Ele vos disser”.
   (Arranjo de Artur Soares)