Poder Descansar

Os discípulos colocaram a Jesus o problema do stress e do descanso. Os discípulos regressavam da primeira missão, muito entusiasmados com a experiência e com os resultados obtidos. Não paravam de falar sobre os êxitos conseguidos. Com efeito, o movimento era tanto que nem tinham tempo para comer, com muitas pessoas à sua volta. Talvez esperassem ouvir algum elogio por tanto zelo apostólico. Mas Jesus, em vez disso, convida-os a um lugar deserto, para estarem a sós e descansarem um pouco.

Creio que nos faz bem observar neste acontecimento a humanidade de Jesus. A sua acção não dizia só palavras de grandeza sublime, nem se afadigava ininterruptamente por atender todos os que vinham ao seu encontro. Consigo imaginar o seu rosto ao pronunciar estas palavras. Enquanto os apóstolos se esforçavam cheios de coragem e importância que até se esqueciam de comer, Jesus tira-os das nuvens. Venham descansar! Sente-se um humor silencioso, um a ironia amigável, com que Jesus os traz para terra firme. Justamente religiosa não condiz com a visão do homem do Novo Testamento. Sempre que pensamos que somos insubstituíveis; sempre que pensamos que o mundo e a Igreja dependem do nosso fazer, sobrestimamo-nos. Ser capaz de parar é um acto de autêntica humildade e de honradez criativa; reconhecer os nossos limites; dar espaço para respirar e para descansar como é próprio da criatura humana.

Não desejo tecer louvores à preguiça, mas contribuir para a revisão do catálogo de virtudes, tal como se desenvolveu no mundo ocidental, onde trabalhar parece ser a única atitude digna. Olhar, contemplar o recolhimento, o silêncio parecem inadmissíveis, ou pelo menos precisam de uma explicação. Assim se atrofiam algumas faculdades essenciais do ser humano.

O nosso frenesim à volta dos tempos livres, mostra que é assim. Muitas vezes isso significa apenas uma mudança de palco. Muitos não se sentiriam bem se não se envolvessem de novo num ambiente massificado e agitado, do qual, supostamente, desejavam fugir. Seria bom para nós, que continuamente vivemos num mundo artificial fabricado por nós, deixar tudo isso e procurarmos o contacto com a natureza em estado puro.

Desejaria mencionar um pequeno acontecimento que João Paulo II contou durante o retiro que pregou para Paulo VI, quando ainda era Cardeal. Falou duma conversa que teve com um cientista, um extraordinário investigador e um excelente homem, que lhe dizia: “Do ponto de vista da ciência, sou um ateu…”. Mas o mesmo homem escrevia-lhe depois: “Cada vez que me encontro com a majestade da natureza, com as montanhas, sinto que Ele existe”.

Voltamos a afirmar que no mundo artificial fabricado por nós, Deus não aparece. Por isso, temos necessidade de sair da nossa agitação e procurar o ar da criação, para O podermos contactar e nos encontrarmos a nós mesmos.

Card. J. Ratzinger

A Igreja é Comunhão – V

Ainda no ambiente do Concílio, mais concretamente no desencadear próximo das suas consequências, podia-se acreditar que a crise na pertença eclesial, na ausência de comunhão, era sobretudo vivida pelas novas gerações, que acentuavam de boa vontade a referência evangélica a Jesus. Logo depois, apesar de tudo, a frase ‘sim a Jesus, não à Igreja’ revela que a pertença eclesial não era só vista de uma forma problemática pelos jovens: a situação real das condições de pertença à Igreja mudou por causa de factores culturais, como o ambiente pluralista, a crise das autoridades, a valorização da subjectividade pessoal e a religiosidade interior, e como consequência também do Choque de Futuro que então se começa a sentir um pouco por toda a parte.
Como consequência da fé cega na ciência e num aspecto superficialmente humano, a comunhão vê na morte a sua fronteira inevitável. Todas as “utopias humanas, mesmo as mais elevadas, de um reino de liberdade e justiça, não podem compensar a injustiça feita aos que já morreram, aos torturados e assassinados do passado. Assim, as utopias puramente humanas não fundamentam nenhuma esperança verdadeiramente universal. Pelo contrário, a communio da Igreja é communio também para além da morte. Só ela pode cumular o anelo do coração humano”(W. Kasper). Mas do pós-morte nada se sabe e para responder a esta questão, a Igreja tem de fazer referência ao seu fundador e apelar para o seu mistério: a sua dimensão humana e divina, sendo esta última a única capaz de fazer justiça ao homem, respondendo-lhe à questão sobre o sentido da vida. A fé cristã impele a antecipar activamente no tempo presente o que será realidade consumada na eternidade. A Igreja deveria ser o espaço onde se vive já o que proclama a fé, o sinal sacramental da fraternidade escatológica, que, além de aguardar o significado, realiza o que significa.
As dimensões visível e invisível da Igreja não devem ser consideradas como duas coisas distintas, mas como duas dimensões que formam uma realidade complexa que está integrada de um elemento humano e outro divino. Esta afirmação que é sumamente importante para a compreensão da eclesiologia do Vaticano II, está fundada cristologicamente na analogia entre o mistério do Verbo encarnado e o mistério da Igreja, segundo a qual ‘assim como a natureza assumida serve ao Verbo divino como instrumento vivo de salvação unido indissoluvelmente a ele, de modo semelhante a articulação social da Igreja serve ao Espírito Santo, que a vivifica, para o aumento do seu corpo.
Perante esta realidade o desejo de comunhão, que traduz a situação espiritual do mundo, e os movimentos litúrgico, bíblico e ecuménico, movimentos internos de renovação, em que despertava a consciência eclesial, convergem na redescoberta da Igreja como comunhão. E o concílio, atento a uma das questões mais profundas do nosso tempo, purificando-a à luz do Evangelho, procura responder-lhe de uma forma que supera a questão e a busca puramente humanas.
E a inovação do Vaticano II de maior transcendência para eclesiologia e para a vida da Igreja foi o ter centrado a teologia do mistério da Igreja sobre a noção de comunhão, que é a ideia central e fundamental nos documentos conciliares.
A comunhão entre os homens é o sinal e reflexo da nossa comunidade pessoal com Deus; aquela é possível apenas como praxe da adoração, como praxe do reconhecimento concreto da transcendência da comunhão trinitária.

O individualismo não tem lugar na Igreja pois a comunhão e a relação pessoal constituem o seu tecido.

Viver um cristianismo com piada

O cristianismo não é propriamente conhecido por ser a religião da alegria, e é uma pena.

Se dissermos que Deus é Amor, ninguém se espanta. A afirmação tornou-se até um pouco banal à força da repetição. Mas se dissermos que Deus é Humor, ficamos em estado de alerta, porque nos parece que alguém está a tentar entrar, no território de Deus, “pela entrada dos fundos” e não pela “porta principal”. A verdade é que o Amor não dispensa o Humor.

O cristianismo não é propriamente conhecido por ser a religião da alegria, e é uma pena. «O cristianismo seria muito mais credível se os cristãos vivessem em alegria», escreveu Nietzsche, e não podemos dizer que sem razão. O nosso testemunho fica muitas vezes refém de uma gravitas insonsa. Esquecemos demasiado o Evangelho da alegria que arrisca-se a tornar uma espécie de tópico marginal.

Por exemplo, quando citamos uma frase bíblica, raramente ela diz respeito à alegria. E, no entanto, a Bíblia é uma espécie de gramática do Humor de Deus. Por incrível que pareça, aquela biblioteca tão séria é também hilariante e está cheia de risos, embora esta dimensão seja, entre nós, escassamente referida. Há páginas que constituem um puro alfabeto da Alegria e muitos momentos que só são compreendidos por quem arriscar sorrir. É que a Revelação de Deus propaga-se numa dinâmica que é claramente jubilosa. Talvez tenhamos de levar mais a sério o verso brincado que o Salmo 2 nos segreda: «O que habita nos Céus, sorri». Ou perceber que a expressão crente é chamada a desenvolver-se como uma coreografia festiva, à maneira do que descreve o Salmo 33: «Alegrai-vos no Senhor, louvai o Senhor com cítaras e poemas, com a harpa das dez cordas louvai o Senhor; cantai-lhe um cântico novo, tocai e dançai com arte por entre aclamações».

O humor abre espaço nas nossas vidas à surpresa. Rimo-nos porque, sem esperarmos, uma palavra cheia de graça vem ao nosso encontro. Na verdade, também a Fé não é, de todo, uma experiência previsível, um mapa prévio muito detalhado, mas uma abertura ao inesperado de Deus que nos convoca.