Quando Mons. Rino Fisichela apresentava o Diretório para a Catequese dizia que «Igreja está diante de um grande desafio que se concentra na nova cultura com a qual se vai encontrando, a cultura digital (…). Diversamente do passado, quando a cultura estava limitada ao contexto geográfico, a cultura digital tem um valor que sente os efeitos da globalização em curso e determina o seu desenvolvimento»[1]. Este é o tempo em que vivemos, e tem diversas formas de ser descrita, mas uma das que está a fazer um caminho significativo é a da «modernidade líquida», da autoria do sociólogo polaco Zygmunt Bauman[2]. Na descrição daquele sociólogo, num mundo híper, ultra, pós, ultra, — e o que mais se quiser acrescentar — moderno não há um ponto de referência firme, não há autores de referência, não há ponto de apoio. O mundo é uma grande aldeia conectada, onde cada um surfa sobre as ondas do efémero. Neste contexto antropológico, melhor, de pobreza antropológica que Lipovetsky descreve como «era do vazio»[3], a evangelização terá como função, sobretudo, dotar cada pessoa de uma carta topográfica e de uma bússola, uma vez que cada pessoa é convidada a traçar o caminho da sua própria vida.
A este dado acresce-se o facto de que o contexto sócio-cultural em que vivemos tem dificultado e até agravado a situação, o que é certo é que, apesar de mudar o vocabulário da catequese, as mentalidades e as práticas concretas não se alteram significativamente. Continua a predominar uma catequese de tipo escolar, com estas caraterística: «redução a um encontro semanal, por vezes em apertados horários pós-escolares e a par ou mesmo em concorrência com atividades formativas ou recreativas talvez mais aliciantes; uma calendarização idêntica à da escola, com os catequizandos ausentes das maiores celebrações, como as da Páscoa e do Natal, por se realizarem em tempo de férias; a instrumentalização das celebrações ao longo do percurso catequético, incluindo a do Crisma, para segurar os catequizandos até, uma vez crismados, deixarem a Igreja como deixam a escola; a linguagem usada, predominantemente escolar – “matrículas”, “exames” “aulas”, “alunos” e a identificação destes por anos, como na escola»[4].
Diante deste fenómeno, tomamos consciência de que o superar destas dificuldades só será possível se conjugarmos harmoniosamente catequese, liturgia e caridade. A catequese tem assim um estilo querigmático, catecumenal, iniciático e mistagógico. A tese que pretendemos defender é a de que, na cultura digital, a liturgia desempenha o papel de fio condutor da ação catequizadora, para que esta tenha um estilo catecumenal.
O contributo do “digital”
A fé, ao ser percebida como relação, postula um processo de transmissão, e este é-o na medida em que supera o tempo e o espaço, o que evidencia a importância e o significado da tradição que, de si, inclui algo próximo à educação. Razão pela qual a catequese e a formação dos educadores da fé deve ter como solo privilegiado a reflexão sobre a transmissão da fé, nas suas diversas coordenadas: pessoal, eclesial e de conteúdo. Estas coordenadas assumem enfoques diferentes ao serem integradas na cultura digital. Surge algo de novo, que o Diretório para a Catequese sublinha e apresenta linhas de ação muito frutíferas (cf. DpC 359-ss). Se à catequese importassem apenas os conhecimentos (fides quae), a cultura digital — e consequente inteligência coletiva (Pierre Lévy[5]) — vista como mera substituição de suporte, não só não ofereceria dificuldade como traria grandes vantagens; mas importa também a adesão vital (fides qua), sem a qual não é possível a experiência de fé no Deus de Jesus Cristo. Para a educação e transmissão da fé não basta, então, dizer; é preciso suscitar a fé, promovendo o diálogo através de uma proposta significativa para cada indivíduo. Pela narração da experiência pessoal de fé — pelo testemunho — convida-se outros à experiência de Deus.
O Papa Francisco desafia os agentes pastorais a exercitar-se
«na arte de escutar, que é mais do que ouvir. Escutar, na comunicação com o outro, é a capacidade do coração que torna possível a proximidade, sem a qual não existe um verdadeiro encontro espiritual. Escutar ajuda-nos a individuar o gesto e a palavra oportunos que nos desinstalam da cómoda condição de espectadores. Só a partir desta escuta respeitosa e compassiva é que se pode encontrar os caminhos para um crescimento genuíno, despertar o desejo do ideal cristão, o anseio de corresponder plenamente ao amor de Deus e o desejo de desenvolver o melhor de quanto Deus semeou na nossa própria vida» (EG 171).
Este é o objetivo c catequese, a ser integrado com às novas tecnologias, que não são meros instrumentos. Antes promovem um determinado estilo de sociedade, a qual, e através da qual, é preciso evangelizar. Mas este é um processo comunitário, logo responsabilidade de todo o corpo eclesial, onde cada sujeito é convidado a contribuir com a narração da sua experiência de Deus, com o seu testemunho.
A fé cristã, ao ser sobretudo uma experiência de relação, não pode ser vertida, sem mais, para um suporte digital, sob qualquer formato, porque não obterá o resultado esperado: a transmissão. A Web, como meio, tem antes a capacidade de ser o catalisador positivo, porque, numa cultura de paradigma informacional, pode potenciar os processos de transmissão, ao ser o meio dominante.
O modo de estar na Web, implica, então, um novo modo de dizer e escutar, de onde sobressaem os seguintes desafios:
– passar de uma catequeses de respostas à de perguntas,
– do centrar-se nos conteúdos para se centrar nas pessoas;
– do centrar-se nas ideias para se centrar na narração.
Primeiro, a catequese, ao deslocar a sua preocupação das respostas para as perguntas, assume o facto de que hoje não é difícil encontrar uma mensagem que faça sentido; a dificuldade reside, antes, em descodificá-la, reconhecê-la como importante e significativa, no meio das inúmeras ofertas disponíveis e no contexto de uma identidade crente. Ao esforço de dar respostas, em ter uma resposta, que surgirá sempre como mais uma no meio de tantas, corresponde a apresentação do Evangelho não como o livro que contem todas as respostas, mas como o livro que contém todas as perguntas juntas, as que valem a pena ser respondidas. Este dado postula um esforço catequético que não se centre apenas na oferta de conteúdos, mas na liberdade de procurar, de forma crítica, os conteúdos que oferecem sentido.
O segundo desafio depreende-se do anterior: uma catequese que se centre nas pessoas e não nos conteúdos. A internet favorece uma busca à medida, onde cada um procura o que quer, quando quer e onde quer. Já não há uma oferta programada para todos em simultâneo, antes buscas que implicam seleções e interações. O poder transitou do emissor para os recetores, admitindo como possível, ainda, o uso desta terminologia. E a busca espiritual, também ela, participa desta lógica, pelo que o programa é elaborado à medida de cada um, a partir dos conteúdos disponíveis na internet. E estes serão tanto mais úteis quanto mais forem respostas às inquietações do cibernautas, o que implica uma atitude permanente de os escutar. A cultura digital oferece esta oportunidade para dialogar, para compreender quais são as «alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje» (GS 1). E é aqui que ganham redobrada importância os “amigos” e os “seguidores” na Web, uma vez que estes serão tanto mais eficazes quanto forem capazes de ser significativos para a rede de cada pessoa. A centralidade das pessoas e não dos conteúdos leva a assumir uma presença eclesial cada vez mais comunicativa e participativa, que favorece a narração testemunhal da experiência crente, com a qual é possível identificar-se. E este testemunho permite fazer emergir a relação entre indivíduos, o que implica a partilha de redes de relações. Nesta teia, o conteúdo partilhado está intrinsecamente ligado a quem o partilha, e é o quem que acaba por qualificar o quê.
O terceiro desafio, o centrar-se na narração e não nas ideias, é a consequência natural das relações interpessoais, porque aqui o que se realiza é o dizer dizendo-se, na proximidade do encontro de uma vida partilhada.
«Neste tempo em que as redes e demais instrumentos da comunicação humana alcançaram progressos inauditos, sentimos o desafio de descobrir e transmitir a “mística” de viver juntos, misturar-nos, encontrar-nos, dar o braço, apoiar-nos, participar nesta maré um pouco caótica que pode transformar-se numa verdadeira experiência de fraternidade, numa caravana solidária, numa peregrinação sagrada. Assim, as maiores possibilidades de comunicação traduzir-se-ão em novas oportunidades de encontro e solidariedade entre todos» (EG 87).
A cultura digital oferece uma oportunidade fantástica para dar visibilidade e tornar significativas as experiências vividas, graças à facilidade com que se podem narrar e partilhar. E narrar é restituir os sujeitos do conhecimento à densidade simbólica e experiencial do mundo. A narração na rede poder ser, sim, individualista e autorreferencial, mas também pode ser polifónica e aberta. As novas formas de narrar e escutar implicam uma ecologia educativa digital acolhedora, capaz de amparar as perguntas que na Web se podem fazer e que não encontram lugar noutros âmbitos, sem esquecer que as novas paisagens mediáticas permitem integrar a continuidade bidirecional entre o virtual e o presencial.
A questão, está, então em reconhecer um tempo e um espaço numa cultura que, de si é desterritorializada e atemporal. E aqui, uma vez mais, a Liturgia ocupa um ligar de destaque para uma cultura que tem toda a informação diante de si, num presente absoluto. A este desafio, a liturgia pode oferecer três contributos[6].
O primeiro é a recuperação da diacronia, através da profissão de uma fé que tem consequências na vida pessoal e comunitária, onde se atualiza, e onde a comunidade funciona como lugar da memória.
O segundo ganho vem com a proposta de ações que permitam a aquisição sapiencial do conhecimento, numa sadia relação com a diacronia, onde o escutar e o deixar-se interrogar pelas grandes questões mostram que o ser humano permanece o mesmo de sempre. Aqui, a recuperação da experiência celebrativa da identidade cristã tem um redobrado impacto, porque dá ritmo ao tempo e espaço à sabedoria.
O terceiro ganho prende-se com a recuperação do conceito de tradição, que leva a tomar consciência de que o hoje é resultado de um caminho andado, a nível horizontal, mas o aqui e agora do crente é-o porque Deus irrompeu e irrompe na história, pelo que a História da Salvação e a Liturgia readquirem uma nova importância, são capazes de dar sentido e de abrir à universalidade, a partir de uma perspetiva escatológica. A experiência é vista, então, como um caminho e um itinerário de sentido.
Para concluir, o que está na base de tudo isto é a unidade da vida cristã que por vezes separamos metodologicamente, mas deve estar unido em cada pessoa. Implica superar a fragmentaridade. Encontro com os olhos fixos em Jesus Cristo e a partir deste ponto a lex credendi abandona-se à lex orandi . Isto é importante para a vida litúrgica e para a piedade popular.
[1] Rino Fisichella, «Conferencia de presentación del Directorio para la Catequesis elaborado por el Consejo Pontificio para la Promoción de la Nueva Evangelización», Vatican.va, 25 de Junho de 2020, https://press.vatican.va/content/salastampa/es/bollettino/pubblico/2020/06/25/pontif.html.
[2] Zygmunt Bauman, Liquid Modernity (Cambridge: Polity Press, 2000); Zygmunt Bauman, Liquid Life (Cambridge: Polity Press, 2005).
[3] Cf. Gilles Lipovetsky, L´Ère du vide: essais sur l’individualisme contemporain (Paris: Gallimard, 1983).
[4] Comissão Episcopal da Educação Cristã e Doutrina da Fé, «Catequese: A alegria do encontro com Jesus Cristo», 2016, par. 2, https://drive.google.com/file/d/0Bza0W92D8A0SYndVcDF4WEIzLXM/view.
[5] Cf. Pierre Lévy, As Tecnologias da Inteligência (Lisboa: Instituto Piaget, 1994).
[6] Cf. Giuseppe Lorizio, «L’antropologia cristiana e la nuova cultura mediale», 2004, http://www.webcattolici.it/webcattolici/allegati/294/Relazione-Lorizio.pdf.