Meta-carta a Deus (endereço desconhecido)

A minha alma tem sede de Deus, do Deus vivo. Quando verei aquele de que tenho tanta sede? As lágrimas são o meu pão de dia e de noite, eu que todo o tempo ouço perguntar. – onde está o teu Deus? (SI 41, 1-4)

1. Quase já não escrevo cartas. Respondo a chamadas telefónicas; respondo, se não suspeito da fonte, aos chamados que me chegam do céu (electrónico). Escrever, até pela dificuldade que teriam os destinatários em decifrar os gatafunhos em que inconscientemente entrei, tornou-se raro. Há desvios e perdas de correio por culpa (minha) da letra. E aqui começa o problema: faz parte do destino da carta perder-se, extraviar-se. Há uma fórmula que adverte para esse extravio: atopos ho Théos.
Esta fórmula diz que nem o sagrado nem o numinoso são Deus. «Onde moras?», perguntam aqueles a quem a palavra é dirigida em primeiro lugar (Jo 1, 36) e que seguem aquele que não tem sequer uma pedra onde repousar a cabeça. Outro problema: o do destinatário. Acontece-nos escrever não sabendo se aquele a quem escrevemos ainda vive. F. Nietzsche traçou um primeiro prognóstico em 1886: «O acontecimento recente mais importante é este: Deus morreu.» E se mudou de morada, se não está disposto a responder-me? As cartas ao Pai Natal são de negócio e fingimento, não são cartas de amor. Deus vem de Deus, de graça, não vou por aí. Escrever só para pedir é mesquinho. Também não enviarei uma carta ao Javé ou ao Deus teológico (Jesus Cristo) de H. Bloom que, pelos vistos, nem sequer se conhecem. Sei, porém, que toda a escrita é uma prática do espaço (do desejo e da página em branco). Sei que “a linguagem se ouve mas que o pensamento se vê”  (Agostinho di-lo no De Trinitate). A palavra cruza-se no espaço do que escreve, do que joga, do que vê. Sei que a Deus se vai com palavras, mesmo sabendo que o drama da interlocução se instalou entre os humanos e que o sentido (da língua) se pode tornar uma impostura. A teologia da de Deus, mas, ao mesmo tempo, fala de um Deus que fala aos humanos, supostamente capazes de lhe dar o seu assentimento, revelando-os a si mesmos a partir de um horizonte «não mundano», logorreico, da palavra. Lactâncio dizia que Deus, por ser um Deus vivo, está sempre em movimento, é capaz de adfectus, de paixão, e que é portanto capaz e amor e de cólera. Este é também o ponto de vista de Bernardo Soares: «Onde está Deus, mesmo que não exista?… um regaço para chorar, mas um regaço enorme sem forma, espaçoso, como uma noite de verão e contudo próximo, quente, feminino, ao pé de uma lareira qualquer… Poder ali chorar coisas impensáveis, falências que nem sei quais são, ternuras de coisas inexistentes, e grandes dúvidas arrepiadas de não sei que futuro… ». Um Deus feminino, à maneira de Juliana de Norwich é um Deus a quem mais facilmente se vai. Se, como afirma Tertuliano: «Nada é, se não é um corpo. Nada é incorpóreo.», Deus há-de ter um corpo, logo há-de ouvir, falar, sentir.
Os pressupostos para falar (escrever) parecem desanuviar-se.
2. Reconhece-se a palavra pelos seus efeitos no corpo. O Teu nome está escrito no meu corpo como memória e futuro. Começo, pois a escrever-Te, porque, ao contrário de Kierkegaard que Te pensava imutável, eu creio que a minha (fala) escrita Te move e Te comove. Ao Deus causa sui ninguém pode rezar nem dançar. Aos místicos é o indizível que lhes dá o poder de falar. E a entrar, tem de ser pela roda da enunciação: eu, aqui e agora, escrevo-Te. Escrevo-Te com o punhado de palavras que me habita para dizer o mais além de mim que passa também pela treva luminosa das palavras e pelo fascínio dos nascimentos novos. A palavra é, de raiz, messiânica. Escrevo porque espero O teu advento. Escrevo para celebrar o Teu Nome, ao desabrigo dos nomes. Contra a idolatria conceptual que Te congelou no tempo. Contra o velho e cínico humanismo e o seu sonho demiúrgico de em tudo dar ao homem um trono e um altar. Escrevo para afirmar, não apenas para dizer os limites da linguagem ou a besta imunda que evoca o teu Nome para matar e torturar e vigiar. Creio, sim, que o nome que melhor Te convém continua a ser este: Amor.
Ou este outro: Misericórdia. Nunca Te vi, Deus abscondítus, apenas Te pressinto no olhar aflito ou alegre dos passantes. Apenas te pressinto na palavra, que é um vivo. Ou na pujança que move o mundo. Sim, o olhar transporta. O sentido é transpositivo. A palavra é legião: sei que não falo no deserto, alucinado e estéril. O magnificat é a forma mais jubilosa de ver o mundo como um milagre, de assistir à primavera, aos nascimentos e até às despedidas. Creio que Tu és o Verbo que se fez carne em Jesus e que habitou entre nós (Jo 1, 14). Porque não sei falar (escrever-Te) só queria mostrar as feridas das palavras varridas pela areia dos dias com que Te escrevo. Espero que, chegando à Páscoa, chegarei à palavra plena. Vou deixar de querer ver-Te: o Teu olhar me basta. Para os amantes, escrever foi sempre dizer: “Vem”! Que outra coisa poderia eu querer, escrevendo-Te?
Nasceu para o Céu a 5 de Maio 2011.

Deolinda – que parva que eu sou!

Deolinda – Parva que sou


Sou da geração sem remuneração
e não me incomoda esta condição.
Que parva que eu sou!
Porque isto está mal e vai continuar, 
já é uma sorte eu poder estagiar.
Que parva que eu sou!
E fico a pensar, 
que mundo tão parvo 
onde para ser escravo é preciso estudar.

Sou da geração ‘casinha dos pais’, 
se já tenho tudo, pra quê querer mais?
Que parva que eu sou
Filhos, maridos, estou sempre a adiar 
e ainda me falta o carro pagar
Que parva que eu sou!
E fico a pensar, 
que mundo tão parvo 
onde para ser escravo é preciso estudar.

Sou da geração ‘vou queixar-me pra quê?’ 
Há alguém bem pior do que eu na TV.
Que parva que eu sou!
Sou da geração ‘eu já não posso mais!’ 
que esta situação dura há tempo demais
E parva não sou!
E fico a pensar,
que mundo tão parvo 
onde para ser escravo é preciso estudar.

Afinal, Senhora Ministra, quem mente e quem manipula?

É pena que quem governa não tenha antes sujado as mãos na vida, nem comido pão amassado em suor e lágrimas. Ou, no poleiro do poder, depressa tenha esquecido a mão que o ajudou e a escola privada que lhe abriu caminho.


O problema das escolas privadas gratuitas merece ser reflectido por todo o país. A arbitrariedade do Governo PS que, a meio do ano, denuncia, unilateralmente, um acordo bilateral, mostra, no mínimo, a falta de respeito por quem luta, com seriedade, a favor do que é fundamental na sociedade, a educação escolar. Um dado ilustrativo de que o problema, agora na praça pública, pouco tem a ver com a crise económica, é saber quanto custam ao Estado as escolas estatais e as escolas privadas com contrato de associação com ensino gratuito. Pedi há tempos ao governo que nos dissesse isso mesmo, com dados exactos e verdadeiros. Nada, porque o governo só responde à Assembleia da República. Cidadão não tem que perguntar, apenas que pagar.

De repente, a Ministra da Educação e os seus zelosos colaboradores desatam a dizer que as escolas privadas ficam mais caras ao Estado que as escolas estatais. E aventam números e percentagens para apoiar as suas afirmações. Simplesmente, estes números são vergonhosamente manipuladas, porque os dados apreciados não são os mesmos. Ora vejamos: as escolas privadas, do que recebem do Estado, e só do Estado, pagam ordenados, fazem a manutenção diária, conservam os edifícios, assumem os encargos sociais… Se os alunos vêm de fora do concelho o transporte toca aos pais. A Ministra apenas faz contas ao que é mandado para as escolas estatais e que corresponde a pouco mais que os ordenados. Tudo o resto, e é muitíssimo, não entra nas suas contas Nem os encargos sociais, nem a manutenção e conservação dos edifícios, nem transportes dos alunos, que estes recaem nas autarquias. Mas mais ainda. O Ministério Estado recorre a uma empresa pública, a “Parque Escolar”, a esta paga todos os meses, em relação a muitas escolas, uma renda de ocupação, à média de 2 euros por metro quadrado. Isto quer dizer que o governo socialista, detesta as escolas privadas, mas está privatizando as escolas do Estado, passando-as para empresas públicas, apoiadas por capitais privados, ligados à Banca. Os encargos sociais nada têm a ver com as escolas estatais, porque estas não são empresas que tenham de responder, mensalmente, na parte que diz respeito à entidade patronal. Mais uma verba que não entra nas contas que a Ministra apresenta ao país, mas que é um encargo do Ministério, ou lá de quem quer que seja. A conclusão é óbvia: tudo isto corresponde a um encargo do Estado, muito acima daquele que tem com as escolas privadas, que decidiu  para já tornar inviáveis e ir matando, por via de uma criminosa asfixia. Agora Intimidando as mesmas escolas, a ministra ameaça e, pelos seus serviços vem fazendo que algumas, já sem saber o que fazer com este estrangulamento e incapazes de responder a encargos presentes, acabem por aceitar pressionadas, as condições do Ministério, sob a ameaça incrível de ou “assinas ou perdes tudo”. Esta foi sempre a forma de dialogar e de respeitar dos regimes totalitários e dos ditadores.

Edificaram-se, há pouco, escolas onde não havia necessidade delas, como se fossemos um país rico que pode esbanjar o dinheiro do povo, necessário para responder a problemas graves não resolvidos; desrespeitam-se um direito primordial dos pais; despreza-se, um contributo válido e concreto que vem qualificando a educação e o ensino; menosprezam-se experiências avalizadas; deixa-se que, a pretexto da crise económica, que se repitam erros lamentáveis do passado, fazendo assim o jeito aos jacobinos de 2011… Um autêntico desgoverno de um governo acossado pelos disparates cometidos e a virem aí ao de cima, em catadupa. A Ministra da Educação, de cabeça perdida, porque o chefe assim manda, atreve-se a dizer ao país, usando todos os meios, coisas impensáveis, que não diria uma qualquer pessoa sensata, respeitadora das pessoas e das instituições, e conhecedora da realidade. E que diz ela mais? “Que o Estado não tem que pagar nem luxos, nem privilégios, nem piscinas, nem campos de golfe e de equitação!…” Não sei quantas escolas privadas, com contrato de associação, conhece a senhora ministra com este estendal a significar, como diz, luxos e privilégios.

Procure saber, é o mínimo decente, as escolas onde existem tais equipamentos, quem os fez e os paga, qual seu alcance educativo, se são propostas da escola a favor dos alunos e da família, e não atire pó aos olhos de ninguém, porque já ninguém de juízo suporta tais aleivosias. Isto chama-se demagogia. Sabe como e porque as escolas que quer calar e fechar, procuram fazer sempre mais e melhor pelos alunos, mormente em zonas mais pobres? Não sabe, porque, se soubesse, não dizia o que disse. Pois, faz-se poupando e administrando bem o que, por direito, se recebe, sem sacrificar o essencial; concorrendo a programas de apoio de cá e de fora; promovendo o voluntariado dos pais, dos professores e das comunidades locais; realizando com os pais iniciativas diversas na comunidade circundante. É evidente que as escolas estatais não precisam de fazer nada disto. O Estado patrão paga e, se ele não paga, não há nada para ninguém. Ou, então e não raro, as escolas estatais recorrem ao favor das privadas próximas… A Ministra ainda não percebeu a justa indignação dos mal tratados e dos injustiçados, mormente dos pais, dos alunos, dos professores, porque nunca passou por isso. É pena que quem governa não tenha antes sujado as mãos na vida, nem comido pão amassado em suor e lágrimas. Ou, no poleiro do poder, depressa tenha esquecido a mão que o ajudou e a escola privada que lhe abriu caminho.

Depois, vêm as afirmações usuais que denunciam a pobreza da democracia que aí temos, e são a prova de que é real a opção pela ditadura: o Estado responde a tudo, as escolas privadas são supletivas, os pais se querem luxos, então paguem-nos…” Diálogo, respeito, reconhecimento de trabalho feito e de serviço prestado às comunidades? Mas que é isso? Os alunos interrompem projectos, mudam de professores com o ano em curso, distribuem-se pelas escolas estatais, mesmo que sejam fora do concelho e longe das suas terras? Não há problema.  O Estado Social (!) encarrega-se de tudo e, então, paga tudo. Já se viu maior loucura? Não há dúvida que somos ainda mais pobres do que julgamos. Os governantes devem ser modelos de vida, de educação, de respeito pelas pessoas e instituições e pela verdade que devem ao país. Não é isso que se vê hoje em muitos casos, mormente quando não têm razão no que decidem, nem dignidade para reconhecer que a não têm.

 Acompanho, de há muito, com atenção e cuidado, os problemas da educação, da escola, da família, do país. Luto por esta causa por fidelidade às pessoas e aos princípios e valores que nos devem nortear e dignificar. Nunca esperei que passados mais de trinta anos de democracia, nos quedassem num patamar, tão pobre e infeliz. Mas não podemos cruzar os braços, nem desistir. A razão não é a da força do poder. A mediocridade beneficia sempre das omissões e das desistências, quando outro mérito não há para poder progredir com verdade e governar com justiça.

Carta Aberta de António Marcelino, bispo emérito de Aveiro

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Continuemos a caminhar…