Ao longo do trabalho, vamo-nos dedicar à análise das diversas secções do capítulo sexto do Evangelho de S. João. Para tal, iremos seguir a divisão da Tradução Ecuménica da Bíblia, que é também utilizada pela Bíblia de Jerusalém e pela Bíblia Sagrada dos capuchinhos.
O sexto capítulo integra a terceira secção do livro dos sinais e começa com o esquema habitual. Dois acontecimentos: a multiplicação dos pães e o caminhar sobre as águas; e dois discursos: um sobre o pão da vida[1] e o outro sobre a eucaristia[2] .
Entre os acontecimentos e os discursos há uma espécie de «entreposto que pretende centrar a questão sobre o verdadeiro alimento»[3]. O evangelista toma como ponto de partida um relato do qual temos «exemplos paralelos na literatura judia e profana. Com a multiplicação dos pães, o autor atribui a Jesus o que se contava dos grandes profetas e taumaturgos»[4], com a intenção de ensinar que quem tiver necessidade de remédio pode encontrá-lo em Jesus.
O segundo sinal, o caminhar sobre as águas, interrompe a narração. A lógica exigiria unir os discursos sobre o pão da vida e sobre a eucaristia com o relato da multiplicação dos pães. «O evangelista coloca-o aqui porque era assim que figurava nos textos narrados»[5]. Os sinópticos referem-no na mesma ordem. É uma constatação importante, pois o evangelho de S. João, apesar de ser muito alegórico, está veiculado com a tradição eclesial.
A cena desenrola-se depois de os discípulos andarem já há algum tempo com o Senhor, o número dos que O seguiam não parava de crescer. «As multidões seguiam Jesus por causa das suas curas e dos seus ensinamentos»[6]. Com este relato, o evangelista tenta realçar o conhecimento sobre-humano de Jesus, que aparece como o Senhor. Toda a situação se desenrola debaixo do seu controlo: Ele sabe perfeitamente o que tem que fazer, e tem a iniciativa em todo o momento. Adianta-se às necessidades que Lhe são apresentadas pelos discípulos. Nos sinópticos[7] são estes que lembram ao Mestre a necessidade da multidão[8]. O «relato de S.João é como uma parábola em acção que pretende destacar a finalidade pela qual Jesus veio ao mundo. Esta acentuação faz com que a cena se ‘desumanize’ em grande medida»[9]. Desaparecem os traços humanos, como é o caso da compaixão pela multidão que há muito que já não come e está a desfalecer[10]. São os sinópticos que recolhem a dimensão mais «humanitária» da cena[11].
Acentua-se a preocupação de Jesus pelo homem e por resolver as suas necessidades mais profundas, em «responder a esta fome que é a razão de ser do pão e do trabalho, a fome de se dar a comer àqueles que o amam»[12]. A multidão seguia Jesus porque via os sinais que fazia com os enfermos. Este facto extraordinário lembra à multidão a figura de Moisés a dar de comer ao povo no deserto. Deduzem que Jesus é um profeta semelhante a Moisés e querem fazer d’Ele rei[13]. «Jesus aparece como a personagem central do relato»[14].
No evangelho joanino o papel dos discípulos fica reduzido apenas à acomodação das pessoas. Naturalmente que devem também recolher o que restar da multiplicação, em cestos.
Tenta-se ressaltar o universalismo da pessoa de Jesus. O número mil designa uma grande multidão[15], e esta vê-se multiplicada por cinco no caso das pessoas saciadas. Os números pretendem sublinhar o aspecto simbólico do relato. O número sete — cinco pães e dois peixes — apresenta Jesus como a plenitude da graça de Deus[16]. Esta graça é inesgotável e permanece na Igreja para sempre. O simbolismo dos cestos que sobram sublinha esta realidade. Devem servir para dar de comer a todo o povo de Deus, simbolizado nos doze apóstolos[17].
O quarto evangelho é o que nos oferece mais pistas sobre a relação desta passagem com a Eucaristia: a leitura de Jo VI, 11 remete-nos para a celebração eucarística. Dentro deste âmbito, merece menção especial o verbo gÛP”D4HJXT que habitualmente se traduz por ‘dar graças’. É este o verbo utilizado na Última Ceia[18] e na referência que S. Paulo faz a ela[19]. E já no início do segundo século se tinha convertido no termo técnico para designar a celebração eucarística[20].
Esta está intimamente ligada à alegria natural de quem celebra as maravilhas de Deus, «porque estas maravilhas são expressas pelo homem nas acções de graças que dão colorido ao louvor de reconhecimento: nestes casos, a acção de graças é acompanhada de uma ‘anamnese’ pela qual a memória evoca o passado»[21].
Não esqueçamos também que, para além de Moisés e dos sacrifícios sangrentos dos animais, relembra, pela oferta do pão e do vinho do pão e do vinho e as acções de graças, o rei sacerdotal Melquisedec, no seu encontro com Abraão[22].
Mas mais do que da multiplicação este relato fala da multiplicação do pão. É evidente que o interesse do narrador não está centrado no facto em si, mas no seu significado. Na mente do evangelista o milagre deve ser considerado como sinal, como símbolo que aponta para outro pão que pode saciar toda a classe de homens[23]. Isto é posto em relevo tanto pelo discurso do pão da vida, como pelo eucarístico. Mas é todo o conjunto que nos oferece a base para afirmar que o evangelista tenta que os leitores entendam o relato como sinal da salvação que Jesus trouxe para todos os homens. É este o cumprimento das esperanças associadas à Páscoa: a libertação total do homem das suas escravidões, incluindo a morte; é a superação daquilo que parece impossível aos homens[24]; é um gesto compreensível apenas com a fé[25].
O poder de Jesus não deve ser mal entendido. Ele aceita ser o profeta que haveria de vir, mas nega ser o rei que eles esperavam. Está aqui antecipada a afirmação que o mesmo Jesus haveria de proferir diante de Pilatos: «a minha realeza não é deste mundo»[26]. Jesus, o enviado do Pai, não tem pretensões políticas; não entra em colisão com César; o campo das suas competências é distinto. Deste modo defendia-se também a comunidade cristã, que estava a ser acusada «pelos judeus diante de Roma de ser um movimento político-revolucionário em luta contra o império»[27].
O evangelista refere no texto que «havia muita grama naquele lugar»[28], o que é «um sinal de esperança messiânica»[29]. Jesus, como bom pastor, conduz as suas ovelhas a boas pastagens, prepara-lhes a mesa do banquete em pleno deserto, como já o fizera outrora[30], aquando do êxodo do povo hebreu.
Na revelação bíblica, alimento e repasto servem para exprimir a comunicação de vida que Deus faz ao seu povo[31]. O maná e as cordonizes do Êxodo, tal como a água que jorrou do rochedo[32], são realidades simbólicas prefigurantes do dom verdadeiro que brota da boca de Deus[33], a Palavra, verdadeiro pão descido do Céu[34].
Estas figuras cumprem-se em Jesus. O dom que Ele promete, fazendo referência ao Êxodo, situa-se também no horizonte do banquete messiânico, imagem da felicidade celeste familiar ao judaísmo[35].
Jesus faz também três acções que ficarão gravados na memória dos discípulos: receber, dar graças e distribuir. «Gestos da liturgia judaica que passaram para a liturgia cristã»[36].
O facto em si é um milagre epifánico, com o esquema clássico, exposto em forma de quiasmo[37]:
a) necessidade de ajuda;
b) temor, mas não medo, perante a epifania;
b’) consolo perante o temor;
a’) acalma-se o vento.
Este «sinal descreve o caminho da Igreja através do mundo no meio das dificuldades paralisantes e do desalento»[38]. Só a presença de Jesus é capaz de fazer com que a barca chegue à outra margem[39]; «na situação de desespero, revela-se a presença divina»[40]. Neste relato, a tempestade estava já anunciada ao mencionar as trevas[41]. Elas simbolizam a ausência de luz, a ausência de Jesus, que se autodefine neste evangelho como a luz[42]. É sempre de noite que falta a Luz[43]. Ao faltar a luz, as ondas precipitam-se sobre a barca e esta detém-se a metade do caminho[44]. Só a presença de Jesus que se manifesta como o eu sou, sem necessidade de estar fisicamente na barca, fez com que esta chegasse a bom porto. É como um milagre acrescentado se o compararmos com os sinópticos, «onde o relato tem diferenças importantes»[45]: Jesus não sobe à barca, como Marcos afirma[46]; S. João não precisa de mencionar os motivos pelos quais acalmou a tempestade nem a compreensão que os discípulos tiveram do facto, como sublinham os sinópticos; «a marcha sobre as águas justifica-se em João como uma ocasião para demonstrar o poder divino de Jesus, não como uma imperiosa necessidade para salvar a situação angustiosa em que os discípulos se encontravam»[47], como afirma Marcos; o facto de Jesus se retirar para o monte é, segundo o quarto evangelho, uma fuga de Jesus, que quer escapar às pretensões da multidão que quer fazer d’Ele rei, ainda que segundo Marcos seja para se dedicar à oração[48].
Segundo o relato de Marcos[49], a barca dirige-se para Betsaida. Em João, pelo contrário, a direcção é Cafarnaum. Deste modo «Jesus está a preparar o lugar de onde debaterá o tema sobre o pão da vida»[50]. É na sinagoga de Cafarnaum que Jesus vai explicar o verdadeiro sentido da multiplicação dos pães e onde os discípulos, os seguidores e os entusiastas de Jesus deverão aprender o verdadeiro sentido e dimensão daquela pessoa que lhes deu de comer.
No que diz respeito à historicidade, o «acontecimento é mais teológico que histórico. Isto significa que a marcha sobre as águas não teve lugar da forma que narram os evangelhos. O ponto de apoio mais sólido de todo o relato e como a infra-estrutura do mesmo é-nos dada pelo Saltério»[51]: Teu caminho passa pelo mar, tua senda passa pelas águas torrenciais, e ninguém reconheceu tuas pegadas[52]. Ao mostrar Iahweh a caminhar sobre as águas está a mostrar poeticamente o Seu poder. Jesus, caminhando sobre as águas, vê adequada e poeticamente afirmado o seu poder supra-humano, apresentando-o como a presença de Deus no mundo e, em particular, na Igreja que, devido à sua acção poderosa pode levar a «bom porto a missão que lhe encomendou o Fundador»[53].
Os dados históricos que se seguem à narração dos sinais precedentes — a multiplicação dos pães e o caminhar sobre as águas — «têm a finalidade de orientar a gente em direcção à sinagoga de Cafarnaum, onde vão ter lugar as manifestações mais importantes de Jesus»[54]. A cena de transição[55] caracteriza-se pela frieza do encontro. Jesus não se sente entusiasmado pelo facto de a multidão o procurar. Jesus diz claramente que não o procuram a Ele, interessam-se, isso sim, mas é pelos benefícios que podem receber d’Ele. «Uma busca interessada e egoísta, que nunca pode entusiasmar a pessoa que é procurada. A multidão buscava-se a si mesma, não a Ele»[56].
No âmbito da revelação, os dons não podem ser separados do dador dos mesmos. O mais importante é o segundo. Jesus diz-lhes com estas palavras: vós me procurais, não porque vistes sinais, mas porque comestes dos pães e vos saciastes[57]. Para além do alimento que mantém a nossa existência terrena, é indispensável aspirar ao alimento que nos proporciona o autor da vida, «que quer plenificar a nossa»[58]; dimensão de eternidade, vida eterna, participação na mesma vida daquele que pode conceder-nos o alimento permanente, o que dá a vida eterna.
É Jesus, o Filho do homem, o credenciado pelo Pai com o selo da sua autoridade, o único que pode proporcionar ao homem o alimento mencionado. Ele exige ser aceite de forma pessoal; que se converta em centro de gravidade da fé para que possa produzir-se o encontro adequado entre o homem e Deus; para que o homem descubra nele o revelador que manifesta e ‘dá’ o Pai[59].
Devem distinguir-se dois discursos na parte discursiva: um sobre o pão da vida[60] e outro sobre o pão eucarístico[61]. No primeiro, o protagonista é o Pai. Ainda que se fale de Jesus como o pão da vida e como enviado do Pai, o verdadeiro protagonista é o Pai[62]. A resposta do homem à acção de Deus é a fé.
No discurso eucarístico muda-se de perspectiva: o protagonista é Jesus[63]. O Pai só é mencionado uma vez e é-o para acentuar o poder que o Filho tem de dar a vida[64]. A resposta aqui não é a fé — esta supõe-se e antecipa-se como absolutamente necessária no discurso sobre o pão da vida, ao jeito de preparação para este — mas o comer e beber a carne e o sangue do Filho do homem. Ele vai oferecer o «verdadeiro maná do Êxodo, um pão vivo e glorioso, que atravessa a morte, o espaço e o tempo»[65].
O discurso sobre o pão da vida está polarizado entre dois pensamentos: a exigência da fé, por parte de Jesus, e a recusa da mesma, por parte da multidão. Este tema, praticamente único[66], desenrola-se em três fases:
– Jesus pede à multidão que se situe ao nível dos sinais, que não se fique apenas pelos milagres[67];
– Jesus exige ser aceite como o revelador do Pai, como o que veio de cima, como o pão descido do céu. As perguntas que se seguiram a estas afirmações, diríamos, pretensiosas expressam a falta de fé dos ouvintes de Jesus. Indicam, além disso, que eles se procuravam a eles próprios e não a Deus[68];
– Perante a sua falta de fé, justificada pelo conhecimento que tinham da origem humana de Jesus, Ele faz uma nova exigência de fé: que o vejam como o único pão da vida[69]. A multidão pede a demonstração de que se faça presente aquilo que esperavam para quando chegasse o Messias. De acordo com as esperanças judias, o Messias devia renovar os milagres realizados por Moisés, o maná seria o alimento permanente. Mas esta demonstração equivaleria a negar a verdadeira fé, já que esta exige aceitar Jesus como o verdadeiro maná: eu sou o pão da vida[70].
Jesus, nesta auto-apresnetação, manifesta-se como a resposta às necessidades e esperanças do homem. Para que seja assim, a única condição que se põe ao homem é que ele tenha fé. Manifestam isto mesmo as palavras de Jesus expostas em claro paralelismo em Jo VI, 35b: o acreditar ou ir a Ele é graça concedida pelo Pai[71] e ao mesmo tempo tarefa humana[72]. Estamos perante um excelente resumo da história da salvação, que destaca a iniciativa de Deus, que se realiza no seu Filho e que se torna eficaz graças à fé.
O evangelista utiliza, pela primeira vez, a frase célebre eu sou, que é uma fórmula de revelação e põe em relevo o que Jesus é para o homem. A aceitação do eu sou introduz-nos no terreno da revelação, da fé e da vida.
A frase eu o ressuscitarei no último dia[73] aparece neste evangelho ao jeito de um estribilho. Trata-se de uma adição que pretende harmonizar a concepção de João sobre a chegada da salvação com a visão mais futurista dos sinópticos[74]. Os lugares em que é utilizada[75] demonstram tratar-se de algo acrescentado, pois as frases em cujo contexto aparecem têm sentido mesmo que se omita o dito estribilho.
Este evangelho, realça também que aquele que crê passou da morte para a vida[76].
O discurso eucarístico não procede da sinagoga de Cafarnaum[77] — pois não se podia falar assim da eucaristia antes da sua instituição, já que ninguém entenderia nada —, mas da Última Ceia[78]. Foi colocado aqui pela pena do evangelista como continuação do discurso sobre o pão da vida[79].
O discurso sobre o pão da vida converte-se na preparação adequada do discurso eucarístico. O lugar que deveria ocupar, que era a Última Ceia[80], foi escolhido pelo evangelista para narrar a lavagem dos pés. Sem dúvida que não se atreveu a omitir uma relato tão importante, recorreu foi à transladação para outro lugar. Não tenhamos dúvida que este era o lugar mais adequado, em razão da semelhança de matéria: pão material, pão descido do céu e pão eucarístico. A transladação está bem justificada[81].
Perante o discurso metafórico sobre o pão da vida — Jesus como o pão dado pelo Pai, descido do céu, daquele que se há-de comer graças à fé — destaca-se o realismo sacramental desta unidade literária estritamente eucarística: é preciso comer e beber da carne e do sangue do Filho do homem. Ao expressar-se deste modo, o evangelista tenta dar uma resposta à pergunta sobre o modo como pode este dar-nos a comer a sua carne. «Uma pergunta que supõe uma compreensão inadequada da Ceia do Senhor. Inclusivamente é preciso contar com uma polémica contra a sua celebração. Procederia das discussões com os judeus, com os judeo-crsitãos ou com outras tendências dentro da Igreja? Inácio de Antioquia afirma que: ‘não confessam que a eucaristia é a carne do Senhor’. Frente a eles põe-se em relevo a necessidade de tomar parte na eucaristia para participar na vida»[82].
O evangelho insiste em apresentar a carne e o sangue como verdadeira comida e como verdadeira bebida. Deste modo colocava-se de lado outra concepção errónea do cristianismo primitivo: a corrente ou tendência gnóstico-docetista «que começam a surgir, e sublinha-se fortemente — para os corrigir —a realidade da Incarnação do Filho unigénito»[83]. Perante uma corrente de pensamento que via a eucaristia como mero símbolo, o texto sublinha a facto de se tratar de uma verdadeira comida, de uma comida real, na qual se participa na carne e no sangue de Jesus Cristo.
Os efeitos da eucaristia expressam-se mediante a fórmula da permanência mútua: aquele que come… permanece em mim e eu nele. Esta permanência designa a vida cristã como tal: o discipulado cristão define-se pela permanência na união com Cristo[84].
A concepção joanina da eucaristia põe em relevo os seguintes aspectos[85]:
– a sua consideração e a sua valorização dentro do acontecimento salvífico no seu conjunto, ou seja, a estreita relação com a missão do Filho de Deus desde a encarnação até à crucificação e exaltação. Os dons sacramentais — o pão e o vinho — são meio para conseguir a união com Cristo. Esta união é eficaz e realiza-se quando se cumpre a exigência única e decisiva imposta ao homem, que é a fé no Revelador, enviado por Deus e portador da salvação;
– a preponderância cristológico-soteriológica: aparece o próprio Jesus como sujeito da acção que se desenrola naquela cena; o seu mesmo ser, toda a realidade implicada na figura do Filho do homem, morto e ressuscitado, faz-se presente na celebração da Eucaristia;
– o efeito principal da eucaristia, a união pessoal com Cristo, que se expressa mediante a mútua permanência: quem come a minha carne e bebe o meu sangue permanece em mim e eu nele[86];
– a palavra «carne» é a mesma que utiliza o quarto evangelho para designar a encarnação: o logos-palavra fez-se carne[87]; é necessário comer a carne. A eucaristia é a prolongação da encarnação e dos seus efeitos.
O evangelho de S. João, apesar e não falar da Eucaristia na Última Ceia, tem uma reflexão muito profunda sobre a Eucaristia, que é apresentada no capítulo VI do seu evangelho, no «livro dos sinais», onde se manifesta a identidade de Jesus Cristo.
Na referência à Eucaristia vê-se claramente uma progressão que vai desde a apresentação de Cristo, o pão da vida enviado pelo Pai à humanidade, até à revelação de Cristo como Aquele que nos dará o pão da vida, que é a sua carne oferecida pela vida do mundo[88]. Ou seja, desde a fé em Cristo como o Messias e Filho de Deus, até à Eucaristia como o sacramento dessa fé em Cristo. À «identidade de Cristo como o verdadeiro pão, o maná que Deus nos oferece, corresponde a atitude da fé»[89]. Aquele que acredita em Jesus Cristo não só não tem fome nem sede, como tem a vida eterna.
Numa primeira parte[90], Cristo é tratado como pão, mas numa forma mais sapiencial e metafórica: Cristo como o alimento, a resposta absoluta de Deus à fome da humanidade. Mas Cristo promete que nos dará a um pão que é sua própria carne.
Os verbos que se empregam é comer e beber, o que dão a esta revelação um tom inconfundivelmente eucarístico. O receber Jesus Cristo pela fé transforma-se em receber Cristo pelo sacramento — à manducatio spiritualis sucede-se a manducatio sacramentalis —, apresentando-se assim os dois aspectos paralelos que nos levam à verdadeira vida em Cristo[91]. Compreende-se melhor esta teologia se se recordar a teologia joanina da encarnação[92], a sucessão dos temas da fé e do sacramento[93].
A carne que Cristo oferece àqueles que crêem n’Ele é a mesma carne que Cristo entregou na cruz e foi ressuscitada ao terceiro dia. A palavra «carne», no quarto evangelho, designa tudo aquilo que «constitui a realidade do homem, com as suas possibilidades e fraquezas»[94] Este dado realça o carácter sacrificial da eucaristia, onde Cristo actualiza sacramentalmente o seu sofrimento vicário.
Ainda que não apareça aqui a categoria do «memorial», todo o discurso da eucaristia faz referência directa ao sacrifício de Cristo na Cruz[95].
Os efeitos da Eucaristia são apresentados nos versículos 53-57. A doação da carne de Cristo tem uma finalidade dinâmica: dar a vida, já que aquele que come tem vida; é o mesmo efeito atribuído anteriormente à fé[96]. O significado atribuído a vida por S. João é-lhe muito próprio: é a imersão na vida do Ressuscitado, que nos quer comunicar a Sua existência escatológica, a vida eterna; «a Eucaristia é igualmente o princípio da ressurreição futura»[97].
Este dado é importante para compreender o tema que nos ocupa, a Eucaristia. «O pão-pessoa pertence a um futuro, a um momento posterior ao que o evangelista está a narrar»[98]. Está aqui presente a oposição entre a «comida que perece (ou deixa perecer) e a comida que conserva até à Vida Eterna»[99]
Esta doação da vida pressupõe a presença real de Cristo na Eucaristia. a terminologia empregue por S. João é uma interpretação claramente realista do isto é o meu corpo, dos outros relatos. Fala em comer e beber, em oposição à tendência docetista que não acredita na realidade nem da incarnação, nem na Eucaristia como dom sacramental de Cristo.
Os interlocutores de Jesus, ao longo de todo o relato — a gente[100], os judeus[101] e os discípulos —, «são as mesmas pessoas com nomes distintos»[102]. Os nomes distintos designam aqueles que se entusiasmaram com Jesus no primeiro momento, considerando-o como um profeta de Nazaré, filho de José[103], mas que não se decidiram a dar o passo exigido pela fé cristã: a aceitação de Jesus como o Filho de Deus, aquele que veio de cima, o pão da vida, o Revelador. «Eis-nos chegados à grande decisão da fé ou da recusa»[104]
O quarto evangelho quase não se interessa pelos Doze, menciona-os apenas aqui e em XX, 24. Porque será que este texto lhes dá tanta importância? A comunidade joanina estava descriminada, era perseguida e tinham-se realizado rupturas e abandonos[105]. Numa situação como esta, é lógico que surja a pergunta inevitável: não seremos nós que estamos errados? A resposta a esta pergunta apenas podia ser dada pela Igreja oficial, representada pelos Doze, a cuja cabeça estava Pedro. Foi esta a razão de acrescentar aqui algo tão importante, mas que, no contexto do sexto capítulo do quarto evangelho, é apenas um apêndice[106].
A «dureza das palavras» ou a inademissibilidade da doutrina, sobre a qual se pronunciam muitos dos seus discípulos[107], não se refere àquilo que se passou imediatamente antes, àquilo que foi afirmado sobre a eucaristia[108]. Depois do que se disse sobre ela não se podia afirmar que a carne para nada serve[109]. Não é precisamente a «comida da carne» o que concede ao homem a vida eterna? Nesta pequena parte do texto não se faz referência à eucaristia, mas ao próprio mistério de Jesus.
A murmuração e a deserção dos judeus-discípulos foi suscitada pela pretensão manifestada por Jesus de ser o Revelador[110]. O auto-testemunho dos que murmuram não deixa lugar para dúvidas: E diziam: «Esse não é Jesus, o filho de José, cujo pai e mãe conhecemos? Como diz agora: ‘eu desci do Céu’?!»[111]. Quem aceita Jesus como o Revelador, como o enviado do Pai, como o que veio de cima, não tem por que se escandalizar com as palavras sobre a eucaristia. Para quem não O aceita assim, também as afirmações eucarísticas são duras, ou seja, sensivelmente inadmissíveis.
Este ponto de vista foi confirmado pelas palavras de Jesus a propósito do escândalo mencionado ou da inadmissibilidade da doutrina: Isto vos escandaliza? E quando vires o Filho do Homem subir onde estava antes?…[112]. Aumentaria o escândalo ou diminuiria? A dedução imediata perece levar-nos a pensar que aumentaria o escândalo. «Parece-nos mais provável que o escândalo desapareceria, porque se supunha que se tivesse aceite o mistério de Jesus, que é Aquele que veio de cima, o enviado de Deus, e não apenas o filho de José como eles pensavam»[113].
O mistério de Jesus expressa-se mediante a fórmula subir até onde estava antes. E isto é duro e inadmissível[114]. Isto demonstra que esta unidade literária não era a continuação sobre o discurso eucarístico, mas seguia-se ao discurso sobre o pão da vida, que termina no versículo 51, antes de começar o discurso eucarístico.
A manifestação de Pedro, enquanto representante dos Doze, é a versão joanina daquilo que conhecemos como «a confissão de Casareia de Filipo»[115]. Pedro não confessa Jesus como o Messias, nem como o filho do Homem ou Filho de Deus; nesta passagem de João apresenta-se Jesus como o «Santo de Deus»[116]. É uma designação singular e muito antiga que expressa a suprema dignidade da pessoa a quem é atribuída.
No aspecto literário remonta-se ao Antigo Testamento:
– a história de Sansão[117];
– também se aplica aos sacerdotes e, em particular, a Aarão[118].
São “santos de Deus ou para Deus”. A expressão é posta por Marcos na boca dos possessos[119]. Em qualquer caso, não é um título correntemente dado ao Messias. «João considera-o como um importante título profético-carismático»[120].
Será que pretende pôr em relevo a presença do três vezes santo, dos Deus santíssimo, em Jesus? Neste sentido, Jesus seria a encarnação e personificação da santidade divina.
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[3] Filipe FERNÁNDES RAMOS, in AA.VV. — Comentário al Nuevo Testamento. Navarra: La Casa de la Biblia, 1995, p. 286.
[6] Jacques GOETTMANN — Saint Jean. Évangile de la Nouvelle Genèse. Paris: Cerf, 1982, p. 101.
[7] Cf Jean- Pierre CHARLIER — Signes et prodiges. Les miracles dans l’Évangile. Paris: Cerf, 1987. Lire la Bible; 79. P. 134.
[8] Mc VI, 35-36; Mt XIV, 13-21; Lc IX, 10-17.
[9] Filipe FERNÁNDES RAMOS, in AA.VV. — Comentário al Nuevo Testamento, p. 286.
[10] Cf Jean GIBLET — La chair du fils de l’homme. Lumier et Vie. 29 (1980) 95.
[11] Cf Filipe FERNÁNDES RAMOS, in AA.VV. — Comentário al Nuevo Testamento, p. 286.
[12] Jacques GOETTMANN — Saint Jean. Évangile de la Nouvelle Genèse. Paris: Cerf, 1982, p. 102.
[14] Filipe FERNÁNDES RAMOS, in AA.VV. — Comentário al Nuevo Testamento, p. 286.
[18] Mc XIV, 23; Mt XXVI, 26; Lc XXII, 17.
[20] Cf Didaké 9,5; 10,1-s. A HAMMAN — Eucharistie, in Dictionnaire Encyclopedique du Christiannisme Ancien. I. Paris: Cerf, 1990, p. 894.
[21] Pierre BENOIT — Vocabulaire de Théologie Biblique, Paris: Cerf, 1970, p. 404.
[22] Gn XIV, 17-20. Cf Jacques GOETTMANN — Saint Jean. Évangile de la Nouvelle Genèse. Paris: Cerf, 1982, p. 103.
[23] Cf Filipe FERNÁNDES RAMOS, in AA.VV. — Comentário al Nuevo Testamento, p. 287.
[24] Só lhes ocorre pensarem no dinheiro; duzentos denários.
[25] Cf Pierre BENOIT — Vocabulaire de Théologie Biblique, Paris: Cerf, 1970, p. 404-405.
[27] Cf Filipe FERNÁNDES RAMOS, in AA.VV. — Comentário al Nuevo Testamento, p. 287. Act XVII, 7.
[29] Jacques GOETTMANN — Saint Jean. Évangile de la Nouvelle Genèse. Paris: Cerf, 1982, p. 102. Cf Sl LXXII.
[30] Sl XXIII; LXXVIII, 19-25.
[31] Cf Pierre BENOIT — Vocabulaire de Théologie Biblique, Paris: Cerf, 1970, p. 407.
[33] Dt VIII, III; Mt IV, 4.
[36] Jacques GOETTMANN — Saint Jean. Évangile de la Nouvelle Genèse. Paris: Cerf, 1982, p. 102.
[37] Filipe FERNÁNDES RAMOS, in AA.VV. — Comentário al Nuevo Testamento, p. 287.
[39] O capítulo XXI confirma este simbolismo.
[40] Jacques GOETTMANN — Saint Jean. Évangile de la Nouvelle Genèse. Paris: Cerf, 1982, p. 104.
[42] Cf Jo VIII, 12; IX, 5.
[44] Os vinte ou trinta estádios equivalem a quatro quilómetros e meio ou cinco quilómetros e meio. Metade da travessia do lago de Tiberíades.
[45] Filipe FERNÁNDES RAMOS, in AA.VV. — Comentário al Nuevo Testamento, p. 287.
[47] Filipe FERNÁNDES RAMOS, in AA.VV. — Comentário al Nuevo Testamento, p. 287.
[50] Filipe FERNÁNDES RAMOS, in AA.VV. — Comentário al Nuevo Testamento, p. 287.
[53] Filipe FERNÁNDES RAMOS, in AA.VV. — Comentário al Nuevo Testamento, p. 288.
[56] Filipe FERNÁNDES RAMOS, in AA.VV. — Comentário al Nuevo Testamento, p. 288.
[58] Filipe FERNÁNDES RAMOS, in AA.VV. — Comentário al Nuevo Testamento, p. 288.
[62] Cf Filipe FERNÁNDES RAMOS, in AA.VV. — Comentário al Nuevo Testamento, p. 288.
[65] Jacques GOETTMANN — Saint Jean. Évangile de la Nouvelle Genèse. Paris: Cerf, 1982, p. 105.
[66] Cf Filipe FERNÁNDES RAMOS, in AA.VV. — Comentário al Nuevo Testamento, p. 288.
[71] Jo VI, 37.39; XVII, 2.7.24.
[72] Jo III, 19-21; VII, 17.
[74] Cf Filipe FERNÁNDES RAMOS, in AA.VV. — Comentário al Nuevo Testamento, p. 289.
[75] Jo VI, 39-40.44.54; XII48.
[77] Cf Filipe FERNÁNDES RAMOS, in AA.VV. — Comentário al Nuevo Testamento, p. 289.
[78] Cf VIGOUROUX — Dictionnaire de la Bible. Paris, 1899, p. 408.
[79] Cf Filipe FERNÁNDES RAMOS, in AA.VV. — Comentário al Nuevo Testamento, p. 289.
[81] Cf Filipe FERNÁNDES RAMOS, in AA.VV. — Comentário al Nuevo Testamento, p. 289.
[83] Jean GIBLET — a Eucaristia no evangelho de João. Concilium. (1968) 55.
[85] Seguirei de perto Filipe FERNÁNDES RAMOS, in AA.VV. — Comentário al Nuevo Testamento, p. 290.
[88] Cf J. ALDAZÁBAL — La Eucaristá. In Dionisio BOROBIO — La celebracion en la Iglesia. Salamanca: Sígueme, 1990. Lux Mundi; 58, p.244.
[91] Cf Michel CORBIN — Le Painde la Vie. La lecture de Jean IV par S. Thomas d’Aquin. Recherches de Science Religieuse. 65/1 (1977) 114.
[93] Cf J. ALDAZÁBAL — La Eucaristá. In Dionisio BOROBIO — La celebracion en la Iglesia. Salamanca: Sígueme, 1990. Lux Mundi; 58, p.245.
[94] Jean GIBLET — E Eucristia no Evangelho de João. Concilium. (1968) 56.
[95] Cf J. ALDAZÁBAL — La Eucaristá. In Dionisio BOROBIO — La celebracion en la Iglesia. Salamanca: Sígueme, 1990. Lux Mundi; 58, p.246.
[96] Cf Jo VI, 39.40.44.47.51.53.54.58.
[97] Jean GIBLET — E Eucristia no Evangelho de João. Concilium. (1968) 58.
[98] Francisco de la CALLE — La Eucaristia: perspectiva joanica. Biblia y Fe. 12 (1986)181.
[99] Jean GIBLET — E Eucristia no Evangelho de João. Concilium. (1968) 54.
[102] Filipe FERNÁNDES RAMOS, in AA.VV. — Comentário al Nuevo Testamento, p. 290.
[104] Jean GIBLET — E Eucristia no Evangelho de João. Concilium. (1968) 59.
[105] Cf Filipe FERNÁNDES RAMOS, in AA.VV. — Comentário al Nuevo Testamento, p. 290.
[108] Cf Filipe FERNÁNDES RAMOS, in AA.VV. — Comentário al Nuevo Testamento, p. 290.
[113] Filipe FERNÁNDES RAMOS, in AA.VV. — Comentário al Nuevo Testamento, p. 290.
[115] Ibidem.Cf Mc VIII, 27-30.
[116] Filipe FERNÁNDES RAMOS, in AA.VV. — Comentário al Nuevo Testamento, p. 291.
[118] Lv XXI, 6-7; Ecl CXV, 7.
[120] Filipe FERNÁNDES RAMOS, in AA.VV. — Comentário al Nuevo Testamento, p. 291.