A dimensão terapêutica da misericórdia

No contexto da “escuta ativa”, o amor e a misericórdia cristã cumprem a missão de “reconectar” com a transcendência e com um sentido de vida, oferecendo uma perspetiva de esperança e redenção.

O exercício da misericórdia, para cada cristão, é sobretudo a expressão natural de alguém que se sente amado e redimido por Deus. No contexto do acompanhamento de pessoas em fragilidade psíquica, esse amor manifesta-se através da empatia, paciência e compreensão. Aliás, Jesus Cristo demonstrou esse amor quando curava e confortava todos aqueles que padeciam de alguma enfermidade.

A misericórdia é o modo de expressar a compaixão, torna-a visível. Manifesta-se, no contexto de acompanhamento no âmbito da saúde mental, através da disposição para ajudar todos aqueles que estão em estado de sofrimento, aliviando as suas dores e dificuldades, para além de promover a criatividade gestativa, capaz de promover estilos de vida saudáveis. De um modo muito concreto, este acompanhamento implica escutar sem julgar, oferecer apoio prático e espiritual, e estar presente, sobretudo nos momentos de crise. A parábola do Bom Samaritano (Lc 10, 25-37) é a expressão paradigmática da misericórdia em ação, onde o samaritano cuida de um homem ferido sem esperar nada em troca.

A Igreja, através das suas comunidades e instituições, pode desempenhar um papel importante no acompanhamento de pessoas com sofrimento psíquico. Pode ser um lugar de refúgio e apoio, onde cada pessoa sabe que pode encontrar solidariedade e compreensão. Por outro lado, as comunidades cristãs podem ajudar a combater o estigma associado às doenças mentais, promovendo uma cultura de aceitação e inclusão.

O modo mais adequado para acompanhar alguém em estado de sofrimento é a “escuta ativa”, onde se pode expressar de modo muito eloquente o amor cristão, a caridade. Quando se está em sofrimento, há uma dificuldade em articular os sentimentos e pensamentos, de um modo coerente. A este dado acresce a sensação de incompreensão, até pelas pessoas mais próximas e queridas. Pela escuta empática, proporciona-se um espaço seguro onde cada pessoa pode expressar as suas angústias, medos e confusões, sem medo de ser julgada ou rejeitada. É nesse espaço de acolhimento que o amor age de maneira curativa, ajudando a pessoa que sofre a tomar consciência que é compreendida e valorizada.

Na nossa conceção antropológica, entendemos o ser humano na sua unidade de corpo, mente e espírito. Assim, o acompanhamento de pessoas com fragilidade psíquica não se deve limitar apenas ao tratamento dos sintomas mentais, em sentido estrito, mas também considerar a dimensão espiritual. Não poucas vezes, a enfermidade psíquica traz consigo uma crise existencial e espiritual, onde a pessoa se sente como que esquecida por Deus e desligada de um sentido maior para a vida. No contexto da “escuta ativa”, o amor e a misericórdia cristã cumprem a missão de “reconectar” com a transcendência e com um sentido de vida, oferecendo uma perspetiva de esperança e redenção. Para os doentes que são crentes, a vida de oração, a prática dos sacramentos e o colóquio espiritual com um interlocutor competente manifesta-se como recursos importantes para encarar a enfermidade. Contudo, é importante que essas práticas sejam sempre oferecidas com sensibilidade, respeitando o ritmo e a situação em que cada pessoa está. A experiência demonstra que uma educação e prática saudáveis da fé cristã oferecem um grande conforto, proporcionando um sentido de paz interior e esperança mesmo no contexto das grandes lutas em que a mente humana, mercê da doença mental, muitas vezes se vê envolvida. A este dado acresce que a Graça divina, o perdão incondicional de Deus e a relação pessoal com Jesus Cristo são, na vida dos crentes, um apoio eficaz e insubstituível.

As religiões num mundo globalizado

As religiões, qualquer uma delas, quando vividas na sua forma mais genuína, são uma força de união e de construção de paz.

Luís M. Figueiredo Rodrigues

O modo como pensamos hoje o mundo como “casa” foi motivado e, ao mesmo tempo, consciencializa para o facto de que tudo está interligado: a distância física ou temporal não nos desresponsabiliza. Por outro lado, o fenómeno da globalização tem incrementado sentimentos populistas de antiglobalização, pelo menos em algumas regiões do globo. Arne Bigsten ensaia um modelo de resposta a esta situação, articulando os três valores da Revolução Francesa: liberdade, igualdade e fraternidade. Esta tríade é percebida como a síntese do que as políticas devem garantir, para estar ao serviço efetivo dos cidadãos, proporcionando-lhe o bem-estar almejado. Aqui, se a liberdade e a igualdade têm sido objeto de esforços de proteção, a fraternidade já não o é tanto. Esta tem-se vindo a sentir ameaçada, mercê da globalização e do desenvolvimento tecnológico.

A fraternidade tem implicações económicas, políticas e sociais de identidade, que determinam a coesão social. O determinante económico da ameaça à fraternidade ou da identidade partilhada é a desigualdade económica, que se reflete nos tipos de empregos e rendimentos a que se pode aceder. A componente política, essa, diz respeito à identidade nacional ou regional. A componente social da identidade é um sentimento de valores culturais partilhados. Com o enfraquecimento de uma identidade partilhada, diminui também a solidariedade, fazendo crescer, em seu lugar, a desconfiança entre estratos sociais, sobretudo dos menos favorecidos em relação aos mais favorecidos. É este o terreno favorável para que os populismos possam difundir as suas narrativas, legitimadoras de discursos de ódio e violência.

Torna-se, então, imprescindível perceber quais os fatores que podem combater os fenómenos de desumanização e violência, com o objetivo de reaproximação e diálogo entre as culturas, promoção de uma cultura de paz, rejeição da violência e do ódio, e acreditando na preciosa contribuição do diálogo entre culturas diferentes. Tudo isto, a partir da constatação de que as religiões aumentam a consciência dos valores comuns de todos os seres humanos e criam um ambiente propício para alcançar a paz e a compreensão entre todos e em todos os níveis, local, nacional, regional e global, como os recorda o “documento Delores”, sobre a educação como um tesouro a descobrir.

De facto, a religião, ao longo da história, tem desempenhado um papel central na formação de valores, identidades e modos de ser e estar nas sociedades. Quando falamos de um mundo global mais fraterno, é importante refletir sobre como as crenças religiosas podem ser um forte promotor da construção de um mundo mais fraterno, apesar das suas complexidades e, por vezes, contradições.

As religiões, qualquer uma delas, quando vividas na sua forma mais genuína, são uma força de união e de construção de paz. Criam espaços de diálogo, onde a diversidade é respeitada e as diferenças são vistas como riquezas. Isso é crucial num mundo globalizado, onde o contacto entre culturas é inevitável e crescente, mas também muito enriquecedor. 

Daí que nunca é de mais refletir na importância que teve a assinatura do Documento sobre a fraternidade humana em prol da paz e da convivência comum, pelo Grão Imame de Al-Azhar Ahmad Al-Tayyeb e o Papa Francisco. Este gesto, e com tudo que ele potenciou e gerou, é uma evidência eloquente de como as religiões podem contribuir para um mundo mais humano e humanizador, uma autêntica “casa comum”.

Texto publicado inicialmente em Mesa Redonda – Missão Online

Fraternidade

Convém ter presente que o conceito de fraternidade não é um produto originário da Revolução Francesa, antes tem as suas raízes bem fundadas na história da humanidade, percebida numa perspetiva europeia. Importa, então, fazer um recorrido sobre o modo como a fraternidade foi percecionada ao longo da História

Luís M. Figueiredo Rodrigues

No opúsculo La Fraternité, Pourquoi? (2019), Edgar Morin contrapõe ao modo darwuinista de compreender a sociedade uma proposta baseada na ajuda mútua e na cooperação. A obra A Origem das Espécies por meio da Seleção Naturalou A Preservação das Raças Favorecidas na Luta pela Vida (1859), de Charles Darwin, influenciou uma certa compreensão da evolução das sociedades, de um modo tal que a teoria da seleção natural justificou a competição entre os indivíduos e as diversas estratégias que visavam que só sobrevivessem os mais aptos. Esta seleção natural levaria a um aperfeiçoamento e, consequentemente, a um progresso qualitativo. Contudo, Morin, apoiando-se no pensamento de Pierre Kropotkine, sobretudo na obra O Apoio Mútuo: Um Fator de Evolução (1902), argumenta que a vida, mais do que na competição, apoia-se na cooperação. Cada uma das espécies, ao desenvolver-se no âmbito de um ecossistema concreto, evidencia que as que melhor se adaptam não são as mais agressivas, mas sim as mais solidárias. Em cada ecossistema há predadores e agressores, que competem com o meio, mas também há a interação positiva, a simbiose e a cooperação, imprescindíveis para o desenvolvimento das espécies e da vida, seja ela de que reino for. Veja-se, a título de exemplo, a importância da polinização, onde a cooperação entre os insetos e os vegetais é imprescindível para a sobrevivência de todos. Edgar Morin conclui que é a resistência à crueldade de tudo o que é predatório e ameaçador para a vida que suscita as práticas de entreajuda e complementaridade, capazes de criar amplos espaços de solidariedade, imprescindíveis para que haja vida. Esta evidencia a necessidade, sempre, de relação com outros, seja através de relações parasitárias ou predatórias, seja através de associações ou simbioses. Em síntese, a existência da vida acarreta sempre o conflito e a cooperação.

A partir deste enquadramento, percebe-se melhor que, face aos perigos comuns de âmbito global – sejam eles ecológicos, económicos, bélicos ou outros –, Edgar Morin preconize a necessidade imperiosa de uma fraternidade humana que salvaguarde a nossa comunidade humana de destino. O conceito de fraternidade aglutina estas problemáticas de uma forma única: como uma espécie de autoajuda, cooperação ou comunidade, e como um vínculo de âmbito familiar, laboral ou político. Diante do inimigo, da miséria humana ou da solidão, talvez a fraternidade se denomine mais através do sinónimo “solidariedade”. Já diante do estrangeiro, do estranho e/ou daquele que é diferente, por qualquer motivo, se denomine como “hospitalidade”. O fulcral é que a fraternidade se caracteriza pela impossibilidade de ser imposta por aqueles que detêm a autoridade; é preciso que surja de cada sujeito, dado que se caracteriza pela relação afetiva e afetuosa interpessoal. Não é, pois, de estranhar que cada elemento da tríade da Revolução Francesa (1789) – liberdade, igualdade e fraternidade – tenha visto desenvolvimentos distintos. Se os primeiros dois foram amplamente refletidos, regulados, defendidos e promovidos, já o último se vê sucessivamente olvidado.

Convém ter presente que o conceito de fraternidade não é um produto originário da Revolução Francesa, antes tem as suas raízes bem fundadas na história da humanidade, percebida numa perspetiva europeia. Importa, então, fazer um recorrido sobre o modo como a fraternidade foi percecionada ao longo da História.

História

No mundo da Grécia Antiga, o conceito de irmão dizia-se com o recurso a duas palavras distintas: adelphos e frater. A primeira expressava a fraternidade própria daqueles que partilham o mesmo sangue, ao passo que a segunda – frater – sofreu uma evolução, passando a designar um vínculo de irmandade, já não de ligações familiares, mas proveniente de uma ligação entendida mais em sentido político.

É com Platão que o conceito de “fraternidade” encontra a sua estabilidade, ao considerar que todos os membros de uma cidade são “irmãos”. Esta irmandade é gerada não pelo sangue, mas pela polis. Esta noção de fraternidade cívica tem o seu expoente máximo em Platão, quando diz: “vós sois todos irmãos nesta cidade” (A República, 415a). A desconstrução do significado de “fraternidade”, oriundo da parentalidade familiar, tem como objetivo consolidar uma fraternidade política, capaz de garantir solidariedade, eficiência e concórdia numa comunidade de cidadãos. Estes ajudar-se-ão mutuamente, em caso de qualquer necessidade. A polis passa a ser entendida como a oíkos, o lugar onde cada cidadão sabe que tem um lar.

Facilmente se vê que a fraternidade, o sentir-se irmão (adelphós), ainda que para designar realidades políticas e institucionais, tem sempre subjacente um tipo de relação interpessoal que almeja a consanguinidade ou, pelo menos, ser vista como tal.

Olhando a partir de uma perspetiva europeia, o período que se segue é o medieval, com clara influência judaica, cristã e islâmica. Os textos denominados pelos cristãos de Antigo Testamento (Bíblia), que são, na sua maioria, comuns a judeus e cristãos, na sua versão dos LXX – a que foi traduzida para grego, após a diáspora dos judeus – utilizam o vocábulo adelphós (cf. 1Mc 12, 10) com o significado de “fraternidade” e “amizade”, percebida no contexto de aliança política com povos estrangeiros. Olhando um pouco mais para o conteúdo das narrativas inscritas nos textos sagrados, percebe-se que a fraternidade se baseia na existência de um Deus – o de Abraão, Isaac e Jacó – que não é exclusivo dos descendentes de Abraão. É de toda a humanidade, é universal. Na verdade, isto implicou a compreensão de dois modos complementares de entender a fraternidade: uma fraternidade entre irmãos, dentro da comunidade, e uma fraternidade universal, porque todos criados por Deus.

Com o Novo Testamento, o cristianismo começa a entender a fraternidade como uma relação que, baseada na fé em Jesus Cristo, se dirige ao próximo e à comunidade cristã, em razão da mesma fé, já não por pertencerem à mesma pátria. O conceito de comunidade cristã desborda os limites das fronteiras políticas. A separação entre os que são irmãos dos que não o são, agora, deixa de ser fundada numa escolha política e na pertença a uma determinada polis, para se fundamentar na crença de um Pai comum, um único Deus, no qual os cristãos se consideram irmãos.

Os relatos dos evangelhos são esclarecedores quanto à utilização do substantivo adelphós e, por conseguinte, ao entendimento subjacente ao conceito de fraternidade. Esta não é entendida como a consequência de haver uma relação de consanguinidade, mas é antes baseada numa decisão espiritual, na resposta positiva à fé em Deus. Mesmo quando há uma relação de fraternidade biológica, a fraternidade espiritual sobrepõe-se. Os textos neotestamentários apresentam uma outra ideia que acaba por ser fundamental para se entender o significado da fraternidade universal dos cristãos: a referência aos pequeninos (cf. Mt, 31-46). Os pequeninos e necessitados são entendidos como os “irmãos preferidos” de Jesus Cristo. Os que aceitam ser pequeninos, acolhendo o projeto de Deus como uma criança, esses é que são considerados “filhos de Deus”. O cristianismo fundamenta a fraternidade não apenas numa adesão livre à comunidade cristã, mas sobretudo na participação comprometida com a causa dos pobres e dos humildes, manifestando deste modo a sua identificação com o destino de Jesus Cristo.

Durante grande parte da Idade Média, o conceito de fraternidade ficou como que arredado da esfera social, restringindo-se àqueles que vivam nas comunidades dos mosteiros. Foi preciso chegar à Baixa Idade Média, aos séculos XII e XIII, para que, graças ao contributo árabe, os textos de Aristóteles começassem a ser conhecidos no ambiente latino e ganhassem lugar de relevo nos ambientes intelectuais. A reflexão sobre a amizade útil, agradável e honesta fez com que se tomasse consciência da importância do tema da amizade para a concórdia social. Na sua Ética a Nicómaco, Aristóteles oferece os pressupostos que hão de permitir fundamentar a amizade social. Tal como os irmãos se amam em razão da sua comum paternidade, embora sejam pessoas diferentes, também aqueles que vivem juntos, num mesmo território, estabelecem entre si relações similares à dos irmãos. Daí que a amizade fraterna seja o que mantém as sociedades coesas, em bom rigor bem mais do que a justiça. Em termos sociais, a amizade fraterna denomina-se concórdia.

No Renascimento, o conceito de fraternidade continua a ser muito influenciado pela conceção grega e medieval, bem como pelas concretizações que se realizavam nas confrariasguildas e irmandades. Estas agremiações, de cariz religioso ou não, congregavam indivíduos que partilhavam a mesma profissão ou a mesma devoção religiosa, instituindo entre si o compromisso de ajuda e defesa mútuas.

Merece destaque, pela influência que teve, o ensaio Sobre a Amizade, de Michel de Montaigne, publicado no final do século XVI. Nesta obra, reflete-se sobre a natureza da amizade, sendo percecionada como algo imprescindível para a felicidade do ser humano. A amizade, resultado de uma opção consciente, caracteriza-se por estar baseada na confiança, na honestidade e na lealdade. A amizade é uma forma de fraternidade porque os amigos ajudam-se tal como se fossem irmãos, o que pressupõe a solidariedade e o apoio recíprocos. Trata-se, tal como já vem desde o antigo mundo grego, de um tipo de relação entre indivíduos similar à dos irmãos de sangue. A influência do pensamento de Montaigne fez com que se desejasse tornar possível um tipo de relação entre os cidadãos baseado na integração das suas vontades individuais, no conhecimento autêntico entre si e na manifestação das distintas opiniões. Começa-se a caminhar para uma visão política da sociedade, ao estilo das guildas, onde a vontade comum pudesse vir a tornar-se a matriz da sociedade.

Chegado ao Iluminismo (filosofia das Luzes) e à Revolução Francesa, a fraternidade vê aprofundada a sua compreensão, bem como a sua plena inscrição no âmbito político. Em certa medida, os conceitos de liberdade e de igualdade opõem-se entre si. Quando a liberdade ganha primazia numa sociedade, a igualde é desfavorecida. O mesmo se passa no sentido inverso: quando se procura concretizar a igualdade entre todos, a liberdade fica limita. A superação desta dificuldade foi procurada através da fraternidade, visando a igualde de direitos. Uma vez que a fraternidade promove relações de solidariedade e cooperação, no respeito pelas diferenças, os ordenamentos jurídicos têm o suporte necessário para promover a igualdade jurídica. A igualdade política é protegida pelo corpo legislativo que reconhece e defende a autonomia de cada sujeito. Por fim, a igualde de todos os cidadãos em direitos e deveres promove a igualdade social, que mais não é do que o direito em que cada cidadão vê reconhecida a possibilidade de se autorrealizar livremente.

Mas convém não esquecer que a Revolução Francesa, que consignou os princípios da liberdade, da igualdade e da fraternidade, só muito mais tarde viu consignada na lei fundamental a terceira palavra da sua tríade. Só na Constituição produzida após a Revolução de 1848 é que a fraternidade ganha letra de lei. Aí se escreve, no VIII e último ponto do Prólogo, que “A República deve proteger o cidadão na sua pessoa, na sua família, na sua religião, nos seus bens, no seu trabalho e disponibilizar a todos a educação que é indispensável a todos os homens; deve, através da assistência fraterna, assegurar a existência dos cidadãos necessitados, quer fornecendo-lhes trabalho dentro dos limites dos seus recursos, quer dando, na ausência da família, assistência àqueles que não podem trabalhar”.

A partir daqui, a fraternidade torna-se um tema político e cultural que encontra em muitos Estados um lugar favorável para a sua concretização. Até que, cem anos mais tarde (1948), a Declaração Universal dos Direitos Humanos, no seu primeiro artigo, preconiza que “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade”. Para se ver o impacto que esta Declaração teve, recorde-se que foi aprovada em 1948 pela totalidade dos Estados-Membros da Organização das Nações Unidas, o que fez com que se viesse a tornar o texto de referência em quase todo o mundo para reconhecer a dignidade de todos os membros da família humana e o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo, como está bem patenteado no Preâmbulo.

Para concluir, apesar de a fraternidade estar inscrita nos principais documentos que norteiam a humanidade e ser um tema que não tem oposição na opinião pública, o certo é que ela continua a ser sistematicamente adiada. A isso não será alheio o facto de a fraternidade, para além dos textos legislativos, precisar também de ser reconhecida e aceite como imprescindível para o progresso dos povos, razão pela qual são precisos também líderes que coloquem em destaque o valor da fraternidade, como seja o caso de Ahmad Al-Tayyeb, Martin Luther King, Desmond Tutu, Mahatma Gandhi ou Jorge Bergoglio, só para dar alguns exemplos. Estes líderes conseguiram demonstrar que é possível um mundo melhor, mais habitável, e que este se pode conseguir através do diálogo social, como expressão de fraternidade.

Bibliografia

Impressa

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MORIN, E. (2019). La Fraternité, Pourquoi?. Paris: Actes Sud.

RATZINGER, J. (2021). La Fraternidad de los Cristianos. Trad. M. Hernández Blanco. Salamanca: Sígueme.

SÈRE, B. (2017). “L’amitié dans la pensée du millénaire médiéval: Tableaux d’une exposition”. Consecutio Rerum , 2 (3), 125-139.

TEPPA, S. (2012). “Fratello, fratellanza e ‘affratellamento’”. Historicά, 3, 273-285.

Desenvolvimento cultural e sobrevivência global

A consciência de cidadania global postula que hoje há situações nos causam inquietação e já não se podem “esconder debaixo do tapete”.

Quando o Papa Francisco se inspira em São Francisco de Assis e publica a Laudato Si’ recorda que «uma ecologia integral requer abertura para categorias que transcendem a linguagem das ciências exatas ou da biologia e nos põem em contacto com a essência do ser humano» (Laudato Si’ 11).

Pese embora, haja diversificadas abordagens do conceito de “cultura”, falar de cultura é fazer o esforço por ter presente o conjunto de conhecimentos, crenças, arte, valores e costumes através dos quais os humanos se desenvolveram e procurar superar os diversos limites que têm como pessoas e como sociedades. Este facto leva a que peça a cada cidadão um «esforço para que esses meios se traduzam num novo desenvolvimento cultural da humanidade, e não numa deterioração da sua riqueza mais profunda. A verdadeira sabedoria, fruto da reflexão, do diálogo e do encontro generoso entre as pessoas, não se adquire com uma mera acumulação de dados, que, numa espécie de poluição mental, acabam por saturar e confundir» (Laudato Si’ 47).

É neste contexto que a cultura pode ver com apreço o desenvolvimento científico, dado que é aí que se projetam desejos e aspirações, esperanças e temores, angústias e certezas. O facto de que a ciência é importante para o desenvolvimento das sociedades é atestado pela importância que os diversos estados dão a esta matéria e os resultados que se podem verificar, que se traduzem em desenvolvimento e prosperidade dos respetivos povos. O problema mais acutilante que se coloca é o conceito de “ciência” que se preconiza: se, num extremo, algo reducionista, entender a ciência apenas como abrangendo as “ciências duras”; ou, de modo mais equilibrado, entender ciência como o a abordagem sistemática, crítica e devidamente fundamentada daquilo que são as diversas manifestações do espírito humano. O “tipo” de ciência que se preconizar acabará por “gerar” comunidades de cidadãos com uma determinada visão cultural e, por isso, do mundo e de si, mais estreita ou mais ampla.

Ao introduzirmos o elemento “globalização” não se preconiza uma uniformização, à escala planetária, daquelas que são as concretizações culturais de um povo que, assim, seria hegemónico e acabaria por excluir todos os outros. É precisamente o contrário. Trata-se de conhecer, valorizar e enriquecer cada cultura em concreto, com aquilo que outras culturas possam aportar, dentro das liberdades individuais de cada povo ou indivíduo.

E, também aqui, a educação desempenha um papel fundamental: ao ter como objetivo o pleno desenvolvimento da pessoa humana e o reforço do respeito dos direitos do homem e das liberdades fundamentais. A educação deve favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e entre todos os grupos raciais ou religiosos, bem como o desenvolvimento dos povos para a manutenção da paz, como reconhecia já o Padre Manuel Antunes, SJ.

Deste modo advém como possível poder acreditar que a “casa comum”, refletida na Laudato Si’ e almejada pela Agenda 2030 da ONU, incrementam um caminho em que cada vez mais se vê crescer a sensibilidade relativamente ao meio ambiente e ao cuidado da natureza, e cresce uma sincera e sentida preocupação pelo que está a acontecer ao nosso planeta. A consciência de cidadania global postula que hoje há situações nos causam inquietação e já não se podem “esconder debaixo do tapete”. A ciência já não vida apenas recolher informações ou satisfazer a nossa curiosidade, «mas tomar dolorosa consciência, ousar transformar em sofrimento pessoal aquilo que acontece ao mundo e, assim, reconhecer a contribuição que cada um lhe pode dar» (Laudato Si’ 19).

Curar implica ajudar a descobrir o “sentido”

Preconizar um modelo assistencial que tenha espiritualidade cristã um dos seus pontos fortes permite pensar o ser humano sem estreiteza de horizontes. Mais, a assunção de uma antropologia não encerrada apena na e pela razão positiva abre a possibilidade de a pessoa ser mais — é também aquilo que acolhe —, e de dar mais do que tem — dá aquilo que recebeu e incorporou na sua existência, lhe deu sentido.

Luís M. Figueiredo Rodrigues

É relativamente recente a abordagem do problema do sentido como uma questão separada. A normalidade era considerar que a referência sobre o ser implicava, necessariamente, a referência ao sentido. Na metafísica clássica, o que se considerava ser era o que por sua vez possuía sentido, de tal modo que o ser e sentido deste equivaliam aproximadamente à mesma coisa.

Atualmente, a questão do sentido une todas as pessoas; é a profunda inquietação sobre o sentido da vida, em que toda a Humanidade está unida. A interrogação sobre a condição humana revela o ser humano como uma interrogação para si mesmo.

Perante o sofrimento, de que a morte é o maior expoente, e o problema do antes e do depois, não se pode deixar de colocar a questão do sentido. E quando a sede de sentido se agudiza, pode chegar-se ao desespero, ao suicídio como expressão máxima da falta de saúde, de ausência de sanação.

A postura que defendemos reconhece o ser-humano como sedento de absoluto, que não se realiza apenas nesta vida, sem, contudo, negar a possibilidade de se realizar. Perante a morte, a radicalidade do problema humano faz emergir na consciência a aspiração que o habita: realizar-se infinitamente. «Queria era sentir-me ligado a um destino extrabiológico, a uma vida que não acabasse com a última pancada do coração», escreve Miguel Torga.

A partir da morte pode reconhecer-se, também, a impotência dos seres-humanos para construírem sozinhos a sua realização: «O homem é um animal compartilhante. Necessita de sentir as pancadas do coração sincronizadas com as doutros corações, mesmo que sejam corações oceânicos, insensíveis a mágoas de gente. Embora oco de sentido, o rufar dos tambores ajuda a caminhar. Era um parceiro de vida que eu precisava agora, oco tambor que fosse, com o qual acertasse o passo da inquietação» (Miguel Torga). É aqui se abrem duas hipóteses: ou se reconhece que a vida terrena — projeto e aspiração a ser mais — tem sentido e abre a possibilidade da esperança de um futuro transcendente; ou aceita que a vida não tem sentido e é o desespero total.

A descoberta do sentido para a vida, integrando o sentido do sofrimento, revela a precariedade e a finitude de uma vida sobre a qual assenta o desejo de absoluto que se espera. É a descoberta da liberdade ansiada, aquela que se tem devido a uma liberdade transcendente. O desejo de liberdade infinita dá lugar à descoberta da condição de possibilidade da liberdade humana: Deus. A realização humana surge a partir do ser pessoa, da relação.

Mas o sentido é um dom, oferecido pelo mistério do Verbo encarnado. O mistério trinitário é o “mistério iluminador” do sentido. A expressão desse mistério faz-se pela vivência da comunhão, onde o ser «não sem os outros» (Michael de Certaux) impele para a solidariedade e para o diálogo. Miguel Torga, continuamos com ele,  escreve que «a Bíblia, o livro dos livros, nos ensina que não há homem sem homem, e que o próprio Cristo teve, a caminho do Calvário, a fortuna dum cireneu para o aliviar do peso da cruz (a dor incurável da solidão). Para mim, pelo menos, feito dum barro tão frágil e vulnerável, que necessito de ser amado durante a vida e acalentar a esperança de continuar a sê-lo depois da morte».

O evento Jesus Cristo é o mediador do sentido, o único intérprete autêntico do ser-humano. 

Preconizar um modelo assistencial que tenha espiritualidade cristã um dos seus pontos fortes permite pensar o ser humano sem estreiteza de horizontes. Mais, a assunção de uma antropologia não encerrada apena na e pela razão positiva abre a possibilidade de a pessoa ser mais — é também aquilo que acolhe —, e de dar mais do que tem — dá aquilo que recebeu e incorporou na sua existência, lhe deu sentido.

sanação, como conceito teológico basilar para compreender a missão da Hospitalidade, não só permite, como obriga, a que exista uma prática antropológica equilibrada, digamos sanada, para que a hospitalidade seja sanante, para curadores e curados! 

Viver em comum começa por acolher

Luís M. Figueiredo Rodrigues

O crente sabe-se e sabe o mundo como crente quando se aceita e aceita o mundo como originados e não como origem e fim em si mesmos, por isso o saber do crente é um saber de esperança

Nos tempos que correm, fortemente influenciados pela modernidade já superada, as tradições são postas em causa, pois crê-se que com o progresso científico-técnico o ser humano, recorrendo apenas à razão, pode encontrar em si, e de forma autónoma, a totalidade das suas motivações e, por isso, todo o conhecimento. Mas isto, que é um preconceito contra a tradição, redunda na negação daquilo que quer afirmar: não há lugar à verdade, mas sim à ideologia, com a consequente perda de liberdade e a desumanização. 

O saber em si não é o que acontece primeiro, nem o fundamento último de tudo, pois o saber da possibilidade de saber, que o mundo existe e habitamos nele, que a linguagem me permite interagir no e com o mundo e falar a outros deste mundo, não se sabe nem se demonstra, antes crê-se. O que implica que, antes de qualquer operação de interação e conhecimento, o ser humano recebe uma linguagem, sobretudo da sua cultura e do seu contexto, que lhe oferece uma estrutura possibilitadora de tudo o demais. O «pensar» absolutamente subjetivo, sem recurso a nada exterior, não é possível. 

Wittgenstein refere o «leito da fé» para significar tudo o que precede o indivíduo e que o sujeito terá de acolher, como condição de possibilidade da sua mesma subjetividade. Ou seja, em termos epistemológicos, o crer antecede o saber e o fazer. A confiança pessoal e a linguagem cultural são, então, a condição imprescindível para que o ser humano seja o que é, tenha um sentido e um percurso vital. Claro que somos livres: podemos rejeitar, transformar, assimilar e transmitir criativamente o que recebemos, mas só se primeiro acolhermos. A dinâmica da construção da identidade própria implica todas as dimensões do ser humano, onde a dimensão crente — que acolhe o dom oferecido — é a mais ampla, originária e fundamental.

A transmissão de verdades mais não é que o reconhecimento de que o ser humano é um ser da tradição, sendo esta constitutiva da cultura humana, na medida em que acolhe, transmite, destrói e cria tradições, ou melhor, reorganiza e faz evoluir a tradição. As verdadeiras tradições assumem um processo libertador e orientador, já que diante de uma multidão de possibilidades de perceber, pensar e agir que pode paralisar o homem, coloca-lhe à disposição determinados modelos ou guiding patterns de perceber, pensar e agir, bem como um ambiente comunitário gerador de instâncias de controle e garantes da tradição normativa, num determinado contexto cultural. Este processo é evolutivo porque constituído, em simultâneo, pelos transmissores e pelos recetores que, posteriormente, se assumem também como transmissores.

Este processo afeta a personalidade, pois o facto de um indivíduo estar numa determinada comunidade fundada na tradição, e de esta o influenciar, significa duas coisas: que a tradição possibilita o desenvolvimento da individualidade e que pode também atrofiar o desenvolvimento livre. A tradição, como destino e desafio, postula a assimilação livre e inteligente da tradição, com a consequente atitude crítica, pois a assimilação pessoal é sempre interpretação. Esta resulta da interação daquilo que é transmitido, ou ensinado, com as experiências pessoais, o que sintetiza a possibilidade de continuidade da transmissão e a sua inovação. Razão pela qual há sempre latente uma certa conflitualidade nestes processos.  

É neste contexto que considera a transcendência na reflexão sobre o conceito de “casa comum” nos liberta e faz com que cada cultura particular seja criadora e libertadora de todo o sentido. A possibilidade de sermos interpelados de forma absoluta, com a constituição de uma certeza fundamental, ou uma base sobre a qual se possa construir todas as outras dimensões, é posta de parte pela maioria dos pensadores da pós-modernidade. É certo que a transcendência, porque transcende, só pode ser apreendida por cada pessoa no aqui e agora da sua história, por isso limitado e incompleto. Mas é parte integrante do acreditar a aceitação dessa finitude, que nos determina como seres de acolhimento e não como donos e senhores da realidade. O crer inaugura uma dimensão excessiva em relação à produção de sentido. Na dinâmica do crer, o sentido, mais do que produzido, é acolhido.

Na sua aceção mais genérica, crente é todo aquele que reconhece, contempla, espanta-se e aceita este estatuto de «ser mistério». Aceita que o dom originário, embora compreendido e aceite no seu âmago e nas suas consequências, nunca será totalmente captado e dominado pelos saberes humanos: apenas poderá ser acolhido como algo imerecido e, ao mesmo tempo, excessivo em relação a tudo o que sabe e faz.
O ser humano crente é o que sabe como crente, sabe o mundo e o sentido de forma crente, por isso age como crente. O crente sabe-se e sabe o mundo como crente quando se aceita e aceita o mundo como originados e não como origem e fim em si mesmos, por isso o saber do crente é um saber de esperança. E porque se descobre e acolhe como dom gratuito, dá-se aos demais de forma gratuita, com fundamento fora de si — no Outro — pelo que o saber crente gera a ação caritativa, promotora da Casa Comum.

Educação moral e religiosa nas escolas?

Começamos por observar[1] — na escuta do que nos diz o Diretório Geral da Catequese, que é uma espécie de lei de bases do sistema educativo da Igreja católica — que a «educação cristã na família, a catequese e o ensino da religião na escola, cada qual segundo as próprias características peculiares, estão intimamente correlacionados com o serviço da educação cristã das crianças, adolescentes e jovens. Na prática, porém, é preciso ter em consideração as diferentes variáveis que geralmente se apresentam, com o intuito de agir com realismo e prudência pastoral, na aplicação das orientações gerais» (DGC 76). Começamos por referir a família, porque ela é o primeiro local de socialização da criança, independentemente do tipo de família em que cada pessoa nasce.

Não se pode ignorar, como nos recorda o Papa Francisco, que a «família atravessa uma crise cultural profunda, como todas as comunidades e vínculos sociais. No caso da família, a fragilidade dos vínculos reveste-se de especial gravidade, porque se trata da célula básica da sociedade, o espaço onde se aprende a conviver na diferença e a pertencer aos outros e onde os pais transmitem a fé aos seus filhos» (EG 66), pelo que caberá a cada diocese ou região pastoral discernir as diversas circunstâncias que se conjugam, tanto no que diz respeito à existência ou não da iniciação cristã no âmbito das famílias, para os próprios filhos, bem como no que diz respeito às responsabilidades formativas que, segundo as tradição e situações locais, são levadas a cabo pelas paróquias e as escolas. Mas o que gostava de sublinhar, sob pena de tudo o que se disser a seguir ficar sem apoio, é que a educação é uma responsabilidade dos pais, mas a comunidade cristã, como lugar primeiro da vivência da fé, tem um papel insubstituível. Falar de educação cristã é assumir, potenciar e ter bem presente uma relação muito estreita entre as famílias — os diferentes tipos de família — e a comunidade cristã local.

Olhando agora mais para o ensino da religião na escola (ou educação moral e religiosa nas escolas) vemos que este se desenvolveu em contextos escolares muito diversos, ao longo dos tempos e das diferentes geografias, o que faz com que, embora mantendo o seu caráter próprio, tenha adquirido diversas concretizações ao longo dos tempos. Os diversos entendimentos e configurações que a disciplina assume dependem dos seguintes fatores: 1) das condições legislativas e de organização dos diversos Estados; 2) da conceção que se tem da didática; 3) dos pressupostos pessoais dos professores e dos alunos em relação à disciplina; 4) da relação que o ensino religioso escolar for capaz de estabelecer com as famílias, a catequese e a comunidades paroquiais.

O papa São João Paulo II, já em 1991, defendia que os alunos «têm o direito de aprender, de modo verdadeiro e com certeza, a religião à qual pertencem. Não pode ser desatendido este seu direito a conhecer mais profundamente a pessoa de Cristo e a totalidade do anúncio salvífico que Ele trouxe. O caráter confessional do ensino religioso escolar, realizado pela Igreja segundo modos e formas estabelecidas em cada País, é, portanto, uma garantia indispensável, oferecida às famílias e aos alunos que escolhem tal ensino»[2].

Por seu turno, o terceiro parágrafo do Artigo 26º da Declaração Universal dos Direitos Humanos refere que os encarregados de educação têm o direito de escolherem o género de educação a dar aos filhos, pelo que a disciplina de Educação Moral e Religiosa nas escolas tem o seu fundamento na liberdade e direito que os encarregados de educação têm de assegurar a educação religiosa e moral dos seus educandos, em conformidade com as suas próprias convicções, o qual se concretiza prioritariamente através da criação de condições necessárias para que os pais ou encarregados de educação possam optar livremente pelo modelo educativo que mais convenha à educação integral dos seus educandos.

Por fim — e este é o argumento que mais me atrai e convence — a educação integral de cada pessoa visa proporcionar o pleno desenvolvimento da personalidade humana e do sentido da sua dignidade, reforçando o respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais, bem como a formação do carácter e da cidadania, preparando o educando para uma reflexão consciente sobre os valores espirituais, estéticos, morais e cívicos. A que acresce o facto de que as religiões são parte fundamental da construção da identidade de cada nação, pelo que a Educação Moral e Religiosa Católica contribui para o reforço da identidade nacional dos países de forte tradição cristã, como é o caso dos nossos. Mas sem nunca perder de vista que a tarefa da escola pública consiste em proporcionar a cada cidadão-aluno conhecimentos objetivos e competências críticas sobre o facto religioso; e todas aquelas coisas que irão permitir-lhe integrar-se e reagir de maneira construtiva numa sociedade desenvolvida. Esta tarefa educativa não pode ser abandonada pura e simplesmente às organizações religiosas; é uma tarefa específica da escola, sobretudo numa conjuntura histórica e num espaço cultural como os das sociedades ocidentais, onde as razões de coabitação civil correm o risco de dissolver-se na “amnésia” geral das raízes religiosas e éticas.

Agora, aquilo que se entende por ensino religioso escolar também tem alguns matizes (cf. DGC 74-75). Nuns casos, em que as leis civis determinam que o ensino deve ser ministrado, de forma comum, a católicos e a não católicos, o ensino deverá privilegiar uma abordagem mais ecuménica e de apresentação das diferentes religiões, numa clara proposta inter-religiosa. Por outro lado, o ensino religioso escolar poderá ter um caráter mais cultural, orientado para o conhecimento das religiões, apresentando, com o necessário destaque, a religião católica. Aqui, o ensino será também uma verdadeira propedêutica à fé, sobretudo se o professor for prudente e respeitador das diversidades presentes na sala de aula. 

Já os alunos, e tendo presente os diversos níveis de identificação religiosa que eles possam ter, possuem objetivos distintos. Para os que têm fé, as aulas de religião ajudarão a compreender melhor a mensagem cristã, em relação com os grandes problemas existenciais comuns às religiões e característicos de todo ser humano, com as visões da vida mais presentes na cultura, e com os principais problemas morais nos quais, hoje, a humanidade se encontra envolvida. Por seu turno, os alunos que se encontram numa situação de busca ou diante de dúvidas religiosas, poderão descobrir no ensino religioso escolar o que é, exatamente, a fé em Jesus Cristo, quais são as respostas que a Igreja oferece aos seus questionamentos, dando-lhes a oportunidade de perscrutar melhor a própria decisão. Por fim, os alunos não têm fé têm nas aulas de religião uma proposta de síntese cultural a partir da matriz cristã, percebendo o que o Cristianismo tem oferecido à Humanidade e como a proposta de Jesus Cristo tem sido um fator de desenvolvimento cultural e humano. Não poucas vezes, uma proposta séria e coerente da síntese cultural cristã tem sido um primeiro anúncio missionário que se desenvolve, depois, num processo de identificação com Jesus Cristo, no seio de uma comunidade cristã concreta.

Caminho da compreensão do Ensino Religioso Escolar

A presença do ensino do facto religioso nas escolas tem ocupado muita da pesquisa e reflexão na Europa. E já se percebeu que defender a legitimidade, ou a necessidade, de uma cultura religiosa crítica no ensino, não é só um dever que corresponderia atualmente às organizações religiosas ou somente aos grupos crentes; é uma petição frequente da maior parte das organizações civis nacionais e internacionais responsáveis pela gestão de bens culturais e das políticas educativas comuns. Para ilustrar esta ideia não faltam exemplos. De entre os mais eloquents, mostrarei apenas três exemplos.

A Comissão Internacional da Educação para o século XXI, no Relatório de 1996 à UNESCO — conhecido como o Relatório Delors —, quis integrar com toda justiça entre os quatro pilares de base de toda educação, o imperativo de aprender a viver juntos e pelas diferenças:  «Ensinando os jovens a adotar a perspetiva de outros grupos étnicos ou religiosos, podem ser evitadas incompreensões geradoras de ódio e de violência entre os adultos. Deste modo, o ensino da história das religiões ou dos costumes pode servir de referência útil para os futuros comportamentos»[3].

O segundo exemplo, amplamente conhecido e favoravelmente recebido na França, é o Relatório de Régis Debray (Abril de 2002) que justifica e fundamenta o ensino do facto religioso na escola laica, por um lado, por causa da «angústia de um desmembramento comunitário de solidariedades cívicas, para o qual contribui, e não pouco, a ignorância do passado e das crenças de outros, repleto de preconceitos», e, por outro lado, pela «busca, através da universalidade do sagrado, com suas proibições e autorizações, de um núcleo de valores constitutivos, para relevar desde o primeiro momento da educação cívica e moderar a destruição de pontos de referências comuns»[4].

Compreende-se que, numa sociedade europeia que se fez pós-cristã e pluralista, é indesculpável que a Escola e a Universidade, quando esta prepara os futuros professores, não valorize a leitura e a interpretação do fenómeno religioso — e também o fenómeno correspondente da secularização — com o objetivo de formar as novas gerações no sentido de saberem ler e interpretar o peso do religioso nas diversas culturas humanas, de se abrirem aos problemas fundamentais do sentido da transcendência e de aprenderem a assumir uma identidade pessoal e cívica aberta à alteridade, isto é, capaz de dialogar com identidades diferentes, mas de igual dignidade e legitimidade.

Por isso, o terceiro exemplo que gostava de mostrar é a publicação dos Princípios Orientadores de Toledo sobre o ensino das religiões e crenças nas escolas públicas[5]onde se dá resposta àquilo que muitos ministérios da educação europeus e a Comissão Europeia já tinham repetidamente pedido: a necessidade de uma disciplina curricular onde se ensine o facto religioso, não apenas para transmitir um património doutrinal, ou para assegurar uma cultura religiosa ao nível das outras áreas do saber, mas também para propor uma visão universalista dos direitos humanos, através de uma pedagogia e didática interculturais. Reconhece-se, assim, uma tabela de valores comuns e compartilhados, a fim de possibilitar às novas gerações a denominada “nova cidadania europeia”.

Estes exemplos se, à primeira vista, parecem muito animadores não deixam de levantar também sérias questões que, no final da nossa comunicação, iremos aflorar.

Mas para nos ajudar a organizar ideias e pensamentos, considero que é oportuno conhecer a pesquisa que a Universidade de Viena, na Áustria, está a liderar, denominado: Educação Religiosa Escolar na Europa[6]. Este trabalho visa conhecer como é que a educação religiosa escolar está a ser desenvolvida em cada país europeu. Até ao momento já publicaram três volumes, correspondentes à Europa Central, à Europa Ocidental e ao Norte da Europa. Falta publicar, ainda, mais três volumes, relativos à Europa de Leste, de Sudoeste e do Sul. O que nos interessa aqui é que os investigadores identificaram 13 itens que são depois trabalhados com os dados de cada país ou região e que ajudam a percebe de modo cabal como o ensino religioso acontece nas escolas. Irei abordar apenas dez, porque os outros são mais de síntese e de projeção do que deverão ser as opções políticas de cada país[7]:

1. Antecedentes sócio-religiosos do país, pretende-se uma breve descrição sobre a situação sócio-religiosa percebida, em particular, a partir de mudanças importantes que se tenham realizado mercê de fenómenos sociais mais densos, como seja o caso da imigração, alterações políticas, e outras. 

2. Quadro legal para a educação religiosa e a relação entre comunidades religiosas e o estado. Procura-se perceber como é que o relacionamento entre igrejas, grupos religiosos e o estado é regulado em cada país, com consequências para os diferentes enquadramentos legais que existem para a educação religiosa.

3. Desenvolvimentos nas políticas educacionais do país. Dado que se estão a proceder por toda a Europa a reformas no sistema educativo, importa perceber que efeitos têm na educação religiosa, quer de forma direta, quer indireta. 

A partir do quadro que estas reformas geram, há implicações nos pontos fulcrais da educação religiosa a seguir enunciados:

4. Papel das escolas de inspiração religiosa, incluindo as mudanças que se operaram no quadro jurídico.O lugar das escolas confessionais, no cenário educacional de cada país, revela muito sobre o reconhecimento estatal e social da importância das Igrejas e grupos religiosos no sistema educacional, bem como sobre o compromisso com a educação religiosa.

5. Conceções e tarefas da educação religiosa. As conceções e tarefas da educação religiosa dizem como ela se posiciona na relação entre as comunidades religiosas, a escola e os alunos, bem como a sociedade no seu todo. É na inter-relação entre esses diferentes atores que reside o desafio da educação religiosa.

6. Prática / realidade da educação religiosa em diferentes escolas. Dependendo do tipo de escola em questão, a educação religiosa pode apresentar diferentes enquadramentos, desafios e dificuldades. Nos quatro itens que vamos ver a seguir, abordam-se fenómenos importantes no contexto da educação religiosa, que acabam por ter implicações no conceito de educação religiosa que se tem e, consequentemente, na formação que se há de ministrar aos professores de religião

7. Observações sobre assuntos/áreas de aprendizagem alternativas, como ética, filosofia, cidadania e outras. A consideração sobre as disciplinas ou áreas de aprendizagem que são oferecidas,  em paralelo com a educação religiosa também é muito importante, por duas ordens de razões: 1) por uma lado, porque o facto de a disciplina de religião ser de frequência obrigatória ou de frequência alternativa (ter educação moral ou cidadania, por exemplo) ou de frequência opcional (ter aula ou ter um tempo sem aula) condiciona muito o modo como a disciplina é ministrada; 2) por outro lado, afeta também o tipo de educação ética e religiosa dos alunos que não frequentam as aulas de religião.

8. Lidar com a diversidade religiosa. A diversidade religiosa é cada vez mais um dado adquirido, pelo que saber lidar com ela e identificar modos de cooperação entre os diferentes atores religiosos da sociedade pode tornar-se um desafio crítico nos países da velha Europa.

9. Religião na escola, para além da educação religiosa. A religião tem um papel a desempenhar na escola além de ser um conteúdo específico oferecido aos alunos? A resposta a esta pergunta revela até que ponto todo o ambiente escolar é favorável à religião. O que na prática acaba por ser o papel e as funções que o professor de Educação moral e Religiosa Católica é chamado a desempenhar na escola.

10. Formação de professores de educação religiosa: escolas, estruturas e opções prioritárias. Este ponto trata de um aspeto determinante, porque a formação que é proporcionada e exigida ao professor para desempenhar a sua missão evidencia a importância que o ensino da religião tem no sistema de ensino de um determinado país. É um professor como os outros?

Independentemente das diferenças entre países, há uma constante que importa referir, a existência, ou coexistência, de três paradigmas (Thomas Khun) que, na esteira de Flávio Pajer[8], podemos denominá-los como político-concordatário, académico-curricular e, o terceiro, ético-valorativo.

Vejamos cada um deles.

primeiro paradigma caracteriza-se por uma polarização na transmissão da herança doutrinal e moral de uma confissão cristã específica, predominante num determinado país ou região. Esta situação permanece enquanto a sociedade permanece culturalmente homogénea (ou bastante homogênea) com a sua tradição religiosa; aqui, as autoridades civis e as religiosas das igrejas locais definem o perfil jurídico, pedagógico e administrativo das aulas de religião e o perfil profissional do professor.

segundo paradigma, académico-curricular, concentra a sua atenção nos requisitos disciplinares da cultura religiosa como uma questão de currículo obrigatório. O conhecimento religioso, para ter um grau de dignidade disciplinar na esfera pública e democrática, deve poder delinear o seu perfil, original sim, mas academicamente plausível e comparável a outros conhecimentos, sem ter que desconsiderar a sua identidade do conhecimento. Assume a visão teológica como uma das interpretações racionais do mundo, capaz de dar o seu contributo para a leitura e compreensão do mundo.

Esta abordagem é muito apreciada porque tem a vantagem de oferecer ao estudante novas chaves de leitura para viver num contexto cada vez mais plural. Tem também alguns desafios, a saber: dá primazia ao conhecimento do facto religioso e não à adesão religiosa; faz uma clara distinção entre o que é a fé e o que é a opção religiosa, tratando-as de modo abstrato; articula de modo novo a relação entre a pastoral das comunidades e as competências culturais da escola pública, tendencialmente mais afastadas; e, por fim, a relação entre o professor e os encarregado de educação, que já não vê nele uma testemunha crente, mas sim um professor, entre os outros.

Por fim, o terceiro paradigma surge pela emergência da necessidade de uma educação ética, nunca antes vista, já que o mundo ocidental está a tornar pós-cristão. Com isso os cidadãos estão a tornar-se multiétnicos e multi-religiosos, com a evidente fragilização do tecido social, sujeitos ao risco de um intenso desmembramento das diversas e talvez conflituantes pertenças identitárias. Este facto faz com que diversos organismos políticos promovam a busca de um conjunto de valores pré-denominacionais, comuns a todas as religiões e crenças, que se devem ensinar de modo prioritário em todas as sociedades democráticas.

Como síntese, poderemos dizer que se fez um percurso em que se começou por focar na verdade religiosa, para depois se centrar na verdade científica da religião, para terminar na afirmação da centralidade dos valores que as religiões propõem.

O futuro do Ensino Religioso Escolar numa sociedade moderna e secular

Depois deste percurso, é tempo de refletir criticamente sobre as diversas concretizações, procurando, também, perceber qual o sentido que o ensino da religião terá nas escolas públicas dos estados modernos e laicos. Esta reflexão deverá, por isso, sair fora de qualquer argumentação confessional e centrar-se naquilo que é o próprio processo educativo[9].

João M. Duque argumenta em torno de três vetores: no primeiro, veremos que o ensino religioso pretende desenvolver o espírito crítico, e auto-crítico, dos alunos, em relação à sua opção religiosa, ou não religiosa; o segundo explora as conceções antropológicas que resultam de tradições religiosas, e que acabam por determinar certas opções éticas e politicas das sociedades; por fim, no terceiro, o ensino religioso seria chamado a desenvolver nos alunos o sentido do mistério, similar ao sentido poético, que é fundamental para uma conceção mais completa do ser-humano. 

Ensino religioso e espírito crítico

O sociólogo francês Alain Torain explica, na sua obra Iguais e Diferentes: Poderemos Viver Juntos? que «o ensino das religiões, das suas crenças como da sua história, não é certamente um atentado à laicidade; pelo contrário, é o silêncio imposto sobre as realidades religiosas que é um atentado inaceitável ao espírito de objetividade e de verdade de que a escola laica se reclama»[10]. E a defesa desse espírito de objetividade e de verdade, que caracteriza a independência de uma instituição focada no lugar educativo da ciência, mede-se essencialmente por dois elementos: o exercício da atividade autocrítica (princípio científico mais geral e incontestado) e o respeito pela realidade, tal como se nos manifesta, nomeadamente a realidade das pessoas e das suas identidades. Estamos perante dois princípios que poderão parecer opor-se mas que, na realidade, deverão constituir duas faces da mesma moeda, caso contrário as identidades tornam-se ideologias encerradas sobre si mesmas e a crítica torna-se um exercício estéril, sem qualquer finalidade prática.

Numa sociedade pluralista e multicultural, como são as sociedades ocidentais, é relativamente fácil compreender a necessidade do respeito pelas identidades particulares. E se esse respeito se pautou, em muitas circunstâncias, apenas por uma tolerância negativa, ignorando-os, o certo é que vamos ganhando consciência de que é necessário mais. A diversidade das identidades deverá ser assumida, precisamente em nome da própria realidade. E a escola é seguramente a instituição da maior diversidade de identidades e proveniências: condições sociais, origens étnicas, identificações culturais e religiosas, entre outras. Em nome da verdade das pessoas que a constitui, incluindo os professores, a escola não pode fechar os olhos a essa diversidade que a habita, nem à diversidade dos elementos que constituem a sua pluralidade.

No conjunto dos elementos constituintes das identidades, a dimensão religiosa não é dos menos importantes. Pretender que esse elemento identitário fique fora da comunidade escolar é puro irrealismo e, em certo sentido, uma falta à verdade dos factos e das pessoas. Era o que pretendia, seguramente, a escola nacional laica, precisamente por querer retirar o aluno do seu solo identitário e pretender transformar a sua identidade na identidade uniforme do cidadão, segundo princípios pretensamente racionais e universais. Reparemos que a fidelidade da escola ao princípio da verdade implica o acolhimento de todas as dimensões de todos os sujeitos que a constituem. Também da sua dimensão religiosa, que deve ser naturalmente acolhida e acompanhada.

Consideramos, por isso, que é missão da escola pública ajudar os seus alunos, marcados por uma determinada identidade religiosa, a adquirir um espírito crítico em relação à sua convicção. Antes de tudo, é importante a aquisição do espírito crítico, como modo de ver o mundo que não absolutiza erradamente a própria posição. Mas, para ser séria e não se esvair na pura crítica como sistema, a crítica precisa de critérios e os critérios não podem prescindir do estudo aprofundado da sua própria identidade. É no aprofundamento interno da identidade religiosa que se pode exercer permanente autocrítica sobre ela. Assim sendo, o polo da crítica não chega a ser completamente extrínseco à própria identidade, mas um movimento que lhe é inerente.

Tradições religiosas e conceções antropológicas

Falar de liberdade pessoal e autonomia do sujeito emancipado não implica, por si, uma determinada tradição religiosa e espiritual? Dito de outro modo: será possível pensar a democracia, a liberdade pessoal, a autonomia e emancipação dos sujeitos sem termos presente os trajetos históricos que percorremos para chegar até aqui, os quais se tocam indiscutivelmente com determinadas tradições religiosas? Como mero exemplo pergunto: é possível pensar hoje o que é ser pessoa sem a disputas cristológicas da Idade Antiga? Aliás, se retirarmos o substrato religioso de muitos conceitos que hoje nos orientam e permitem a sã convivência, que precisam de uma mediação socializadora que é, por sua vez refletida, mas que provém das grandes religiões, este potencial cognitivo e semântico poderá um dia tronar-se inacessível.

Assim sendo, os princípios ou valores que subjazem à própria ideia de laicidade, como afirmação da dignidade do ser-humano, contra todas as suas violações, também hipoteticamente em nome de ideais religiosos – são princípios originados numa tradição que consideramos religiosa e cuja transmissão e afirmação dependem, também, de identificações religiosas. Transmitir esses valores extraindo-os ao seu contexto originário poderá́ conduzir a um problema de fundamentação teórica, mas conduzirá sobretudo a um problema de fundamentação prática, na medida em que eles dependem de convicções pessoais e coletivas para subsistirem.

O sentido do mistério

Chegamos agora a um outro nível da importância humanizadora da experiência religiosa, em si mesma, independentemente dos efeitos secundários que possa ter sobre os sujeitos e as sociedades. Vejamos apenas que a experiência religiosa poderia ser identificada com a experiência do mistério de tudo o que existe: Deus seria assumido, antes de tudo, como “mistério do mundo”[11], para usar uma expressão de Eberhard Jüngel. Entende-se por mistério não o enigmático, mas na sua dimensão originária, referente ao próprio milagre de tudo ser. Experimentar a realidade, quanto a essa sua dimensão, significa não a reduzir à mera objetividade empírica ou à pura relação dos factos – eventualmente manipuláveis. Também implica, por isso, não a situar apenas sob a perspetiva do benefício utilitário. Exige-se, pelo contrário, uma atitude de atenção ao permanente dar-se gratuito daquilo que acontece, como algo que nos envolve e que nunca dominaremos completamente. Poderíamos identificar esta dimensão da experiência com a experiência poética ou estética, nada negligenciáveis numa educação séria, que não pode, por isso, prescindir da Religião na escola.

Conclusão

Par concluir esta comunicação, permiti que deixe algumas questões no ar, para dialogarmos ou, simplesmente, para acompanharem aqueles que agora estais a iniciar a vossa formação.

1º O Professor deve ter uma orientação confessional?

Esta questão deriva da necessidade de, na escola pública, não haver opções confessionais, partidárias ou outra. A escola pública é para todos! Sim, mas convém ter presente que a identidade confessional de um professor não implica, por si só, que ela exerça proselitismo.  O proselitismo não deve ter lugar na escola, mas o professor, estamos em crer, deverá ter a sua opção religiosa. Como se pode ensinar uma coisa que não se conhece e se saber? E como se pode saber o que é a Religião sem uma experiência religiosa, que depois de refletida e sistematizada. Claro que, porque se trata de religião, há sempre o “medo” de que o professor esteja a influenciar os seus alunos… Embora isso possa acontecer, naturalmente, não é o que acontece com qualquer professor, seja de que área for, quando ele é efetivamente bom? De influenciar a ser proselitista vai uma diferença grande. A primeira situação é razoável que aconteça, já a segunda é de evitar, de todo.

Se quisermos uma isenção tal, corremos o risco de ensinar outra coisa que não seja Religião. Sociologia da religião, por exemplo, ou outra forma de abordar o facto religioso, que não seja na perspetiva religiosa. Se quisermos ironizar, seria como pedir que as aulas de música fossem lecionadas por alguém que não gosta de música e não sabe tocar nenhum instrumento. Não vá dar-se o caso de o professor de música gostar de música e tocar bem violino e influenciar os alunos para estre instrumento em detrimento dos outros elementos da orquestra!

Quem legitima o professor?

Antes de mais, gostava que ficasse claro que eu preconizo que um professor de religião deve ter a mesma exigência e grau de habilitação igual a qualquer outro professor, de qualquer outra matéria. Neste sentido, as leis de cada Estado é que determinam qual a habilitação mínima e outros requisitos para exercer o cargo de professor numa escola. O que deve ser um professor de religião deverá estar regulamentado pela Lei de cada Estado. Isto é uma coisa, outra é ser o Estado a ratificar diretamente quem deve exercer a profissão ou, por outro lado, confiá-lo a algum organismo que, no enquadramento jurídico existente, se perceba que tem melhores condições para o exercício. Dou como exemplo a Ordem do Médicos, para os clínicos; a Ordem dos Advogados, para os juristas; a Câmara dos Contabilistas Certificados, para os contabilistas, e tantos outros. Em qualquer uma destas instituições, o Estado delega o controle do acesso à profissão, a formação permanente que deve ser exigida a cada profissional e as implicações jurídicas que as faltas à ética da profissão implicam. Se assim é para tantas profissões, que melhor instituição há que a Igreja para funcionar como instituição que garante à sociedade a qualidade do ensino da religião, através do reconhecimento daqueles docentes que são idóneos para tal?


[1] Este texto foi elaborado para servir de apoio à comunicação oral a realizar no dia 24 de novembro de 2019, na Sessão de Abertura do Curso de Formação para professores de Educação Moral e Religiosa Católica, na Diocese de Santiago – Cabo Verde. Em algumas partes transcrevemos textos de outros autores, sempre devidamente identificados, mas sem a referenciação metodológica que seria de esperar num texto científico que fosse para publicar. 

[2] Giovanni Paolo II, «Al Simposio del Consiglio delle Conferenze episcopali d’Europa sull’insegnamento della religione cattolica nella scuola pubblica (15 aprile 1991)», acedido 21 de Novembro de 2019, http://www.vatican.va/content/john-paul-ii/it/speeches/1991/april/documents/hf_jp-ii_spe_19910415_insegnamento-religione.html.

[3] Jacques Delors et al., Educação um tesouro a descobrir, trad. José Carlos Eufrázio (São Paulo: Cortez, 1996), 98.

[4] Régis Debray, «L’enseignement du fait religieux dans l’école laïque – Ministère de l’Éducation nationale», acedido 27 de Abril de 2011, http://www.education.gouv.fr/cid2025/l-enseignement-du-fait-religieux-dans-l-ecole-laique.html.

[5] OSCE Office for Democratic Institutions and Human Rights, The Toledo Guiding Principles on Teaching about Religion and Beliefs in Public Schools (Warsaw: Organization for Security and Co-operation in Europe, 2007).

[6] Cf. https://www.rel-edu.eu

[7] Cf. Martin Rothgangel et al., «Preface: Religious Education at Schools in Europe», em Religious education at schools in Europe. part 3: Northern Europe, ed. Martin Rothgangel, Martin Jäggle, e Thomas Schlag (Viena: Vienna University Press, 2016), 7–14.

[8] Cf. Flavio Pajer, «Cómo y por qué Europa enseña las religiones en la escuela: los tres paradigmas», REER 5, n. 1 (2015): 1–24.

[9] Seguiremos muitíssimo de perto, literalmente, o texto de João Manuel Duque, «O Ensino da Religião como resposta à laicização», Theologica 51, n. 2 (2016): 11–20.

[10] Alain Touraine, Iguais e Diferentes: Poderemos Viver Juntos? (Lisboa: Instituto Piaget, 1998), 363.

[11] Cf. Luís M. Figueiredo Rodrigues e Paula Cristina Santos Oliveira, «(Re)Pensar a “Morte de Deus”. Uma leitura de Eberhard Jüngel», Cenáculo 37, n. 146 (1997): 77–112.

A Web no serviço da educação da fé

A evidência de que os recursos digitais estão a ocupar um espaço cada vez maior nas sociedades contemporâneas, aliado ao facto de que a fé cristã se vive no hoje da nossa história, leva a que procuremos compreender o uso que se faz daqueles recursos na missão evangelizadora da Igreja, de modo especial na missão dos catequistas. 

Percebemos que um grande número dos nossos catequistas tem acesso à internet e frequentam-na diariamente. Mas há que constatar que a presença digital tende a ser invisível, já que a sua interação com outros indivíduos e a partilha de recursos produzis por si é normalmente escassa. A utilização que os catequistas fazem da Web pode ser dividida em três grupos: no primeiro, os que usam a internet para descarregar materiais para as catequeses e, por vezes, de forma acrítica; o segundo grupo, bem menor, utiliza a Internet para estar atento às notícias e demais informações da Igreja, sobretudo do Papa e da Igreja local; por fim, um pequeno grupo, utiliza os recursos da Web para proceder a reflexões mais elaboradas sobre a catequese e sobre questões de fé, através dos documentos disponibilizados pelas diversas instâncias eclesiais.

Quando se olha para o exercício da catequese, verifica-se que a Web acaba por ter um papel, quase só, de repositório ao qual se vai buscar recursos para aplicar na sala com os catequizandos ou então como “substituto” do encontro presencial através da videoconferência. Não admira, pois, que os sítios mais visitados sejam aqueles que se caracterizam pelo facto de serem repositórios onde se disponibilizam materiais para usar na prática catequética. O que acaba por ser empobrecedor, até para o exercício da catequese como educação da fé, uma vez que a Igreja, que se diz como casa e escola de comunhão, tem na partilha uma das suas expressões mais profundas (Cf. 1 Cor 16, 1-4). 

A Web na catequese

A formação que a Web possibilita tem, então, de ser vista a partir do problemas das linguagens e do modo como cada pessoa participa e está presente nas redes mediáticas, sobretudo a partir da categoria de amizade, muito falada neste contexto, que deverá ser vista como expressão do testemunho cristão, quer dos indivíduos, quer das comunidades, num permanente exercício de abertura de portas, sobretudo às periferias existenciais.

Mas a relevância da internet será tanto maior quanto esta se puder utilizar de acordo com a pedagogia divina , que se concretiza em torno de três princípios: o da condescendência, o da participação comunitária e o da participação gradual.

Condescendência

O recurso à Web responde ao princípio da condescendência divina, que se adaptou à «condição humana». A utilização da internet mais não é, também, do que a adaptação às condições em que hoje uma boa parte da humanidade vive, procurando reconhecer e potenciar as possibilidades existente no ambiente digital. Mas o auge da condescendência de Deus realiza-se em Jesus Cristo, a palavra de Deus feita carne, que é o ponto mais alto da condescendência divina. A pedagogia da incarnação não coloca como ponto central a presença de um corpo, mas sim o Evangelho que deve ser proposto sempre para a vida e na vida das pessoas; logo, mais do que proximidade física, importa uma proximidade vivencial. Destaca-se a visibilidade que é dada à experiência de fé, à sua narração . Verifica-se a necessidade de «iluminar e interpretar a experiência com o dado da fé (…), sob pena de se cair em justaposições artificiais ou em compreensões integristas da verdade» (DGC 153), logo contrárias ao princípio da condescendência. 

Participação comunitária

A dimensão comunitária da pedagogia divina também tem na Web um fator potenciador. Recordemos que esta dimensão requere que se valorize a experiência de fé de uma comunidade crente e apoia-se na relação pessoal e no diálogo. A internet oferece recursos para que esta partilha de experiências aconteça e o diálogo, de onde pode brotar uma profunda relação, surja. Se, por vezes, o diálogo e a partilha se tornam difíceis num encontro presencial, nos espaços virtuais é diferente. O reconhecimento e potenciação de ecologias de aprendizagem  não só dará espaço para que cada membro da comunidade se expresse, como poderá mesmo modificar a fisionomia das comunidades, tornando-as mais ativas .

Gradualidade

Por último, o recurso à internet permite que a gradualidade, que é própria da pedagogia divina, seja personalizada, o que é bem difícil noutros âmbitos mais clássicos. Aqui, o centro é de facto o indivíduo que tem uma participação ativa em todo o processo, é ele que decide o ritmo. Sem essa participação, o progresso não se verifica e isso é evidenciável .