Qualidade Espiritual e Sanação

Qualidade Espiritual e Sanação 

A abordagem epistemológica[1] do ser humano, pelo menos nosso contexto ocidental, assistiu a uma substituição sucessiva de diversos modelos compreensivos da realidade, que foram dominando em cada contexto histórico-cultural.
E nem sempre, estamos em crer, estas transições foram ou são pacíficas e bem entendidas. Nem sempre a tradição, como processo normal de gerar e comunicar cultura, é valorizada corretamente e de modo construtivo, para a compreensão do ser humano.
Esta visão crítica da tradição tem as suas raízes bem antigas. Começou quando, na Grécia, se passou do mythos para o logos[2], dando origem à sucessão de diversos modelos reflexivos[3]. Do contexto grego-romano chegou-nos o homo politicus onde a polis é o horizonte de referência para a qual se orientava a ética[4], a religião[5] e o conhecimento[6].
A este sucedeu-se o homo religiousus medieval. Embora se trate de uma religiosidade percebida mais em contexto social que individual, procurava-se que a cidade terrena fosse um espelho, ainda que pálido, da Civitate Dei.
Com o advento da modernidade ­surgiu o homo sapiens, ainda que em tensão com o homo faber. O homo sapiens é entendido «no sentido racionalista, ou seja, como metáfora para o domínio da razão humana sobre todo o real. Neste sentido, encontra-se presente tanto na sua versão de ciência empírica como a de idealismo absoluto. Também aqui não se esqueceu a dimensão política, mas agora colocada ao serviço da razão universal e, em simultâneo, subjetiva»[7].
Do homo faber, do progresso industrial e tecnológico, emerge o homo communicans, o homo videns e, por último, o homo virtual. Em que o real nem sempre é físico — nas quatro dimensões do real físico — antes existe nos espaços virtuais gerados e subsistentes na interação das novas tecnologias electrónicas, onde só a ilusão do tempo e do espaço, ou melhor, da sua anulação parecem importar, ficando-se apenas pela representação virtual. Não já do real físico, mas do real abstrato e fabricável.
Neste contexto da modernidade, o homo scientificus do positivismo é um dos exemplos mais claros desta redução, simultaneamente, idealista e empirista da antropologia.
Mas a modernidade, com as suas tendências monolíticas e reducionistas, gerou uma crise, dando origem à pós-modernidade. E esta, entre outras coisas, põe em relevo aquilo que na modernidade esteve em falta: o ser humano não se pode definir univocamente, antes precisa de ser visto em diversas dimensões, todas elas imprescindíveis para a compreensão antropológica. Não de forma justaposta, mas integrada e relacionada.
Mas há uma visão fundamental, que antecede e torna possível todas as outras — e aqui somos muito devedores à reflexão de João Duque —  que é a do homo credens. João Duque, na sua obra, faz convergir a partir daqui, de forma orgânica e equilibrada, todas as dimensões do ser humano, em ordem a uma antropologia[8] integral. E supera todo tipo de dualismos, dando resposta às posições filosóficas da pós-modernidade. Pelo menos as mais significativas.

Tradição

Nos tempos que correm, fortemente influenciados pela modernidade já superada, as tradições são postas em causa, pois crê-se que com o progresso científico-técnico o ser humano, recorrendo apenas à razão, pode encontrar em si, e de forma autónoma, a totalidade das suas motivações e, por isso, todo o conhecimento. Mas isto, que é um preconceito contra a tradição, redunda na negação daquilo que quer afirmar: não há lugar à verdade, mas sim à ideologia, com a consequente perda de liberdade e a desumanização[9].
O saber em si não é o que acontece primeiro, nem o fundamento último de tudo, pois o saber da possibilidade de saber, que o mundo existe e habitamos nele, que a linguagem me permite interagir no e com o mundo e falar a outros deste mundo, não se sabe nem se demonstra, antes crê-se. O que implica que, antes de qualquer operação de interação e conhecimento, o ser humano recebe uma linguagem, sobretudo da sua cultura e do seu contexto, que lhe oferece uma estrutura possibilitadora de tudo o demais. O ‘pensar’ absolutamente subjetivo, sem recurso a nada exterior, não é possível.
Wittgenstein refere o “leito da fé” para significar tudo o que precede o indivíduo e que o sujeito terá que acolher, como condição de possibilidade da sua mesma subjetividade. Ou seja,  em termos epistemológicos, o crer antecede o saber e o fazer. A confiança pessoais e a linguagem cultural são, então, a condição imprescindível para que o ser humano seja que é, tenha um sentido, um percurso vital. Claro que somos livres: podemos rejeitar, transformar, assimilar e transmitir criativamente o que recebemos, mas só se primeiro acolhermos. A dinâmica da construção da identidade própria implica todas as dimensões do ser humano, onde a dimensão crente — que acolhe o dom oferecido — é a mais ampla, originária e fundamental[10].
A transmissão de verdades mais não é que o reconhecimento de que o ser humano é um «ser da tradição»[11], sendo esta constitutiva da cultura humana, na medida em que acolhe, transmite, destrói e cria novas tradições, ou melhor, reorganiza e faz evoluir a tradição. Aqui ressalta a linguagem, ou linguagens, como elemento de destaque, porque é ela que permite a transmissão. A linguagem é, então, em simultâneo, meio de transmissão cultural e elemento constitutivo da tradição. Esta, por seu turno, dá resposta cultural a duas limitações do ser humano: a finitude e a necessidade de não se começar sempre do início, mas de assumir e acolher as descobertas precedentes para, sobre elas, construir e elaborar novas conquistas. A linguagem permite que se realizem processos de transmissão, de sanação, onde é entregue ao indivíduo algo que o transcende no tempo e no espaço, e que ele acolhe, fazendo-o seu, para, por seu turno, na medida em que acolhe, transmitir. É neste quadro conceptual que entendemos a tradição como transmissão e, por isso, sobreposto conceptualmente a sanação, já que o entregar e receber não é um ato de alguém sobre alguém, mas uma interação de, pelo menos, dois sujeitos, que ativamente se empenham no mesmo processo.  É um processo comunitário, em ordem a uma libertação total do indivíduo, por isso, sanante.
As verdadeiras tradições assumem um processo libertador e orientador, já que «diante de uma multidão de possibilidades de perceber, pensar e agir que pode paralisar o homem, coloca-lhe à disposição determinados modelos ou “guiding patterns” de perceber, pensar e agir»[12], bem como um ambiente comunitário gerador de instâncias de controle e garantes da tradição normativa, num determinado contexto cultural. Este processo é evolutivo porque constituído, em simultâneo, pelos transmissores e pelos receptores que, posteriormente, se assumem também como transmissores, fazendo de cada sujeito, em simultâneo, curador e curado.
Este processo afeta a personalidade, pois o facto de um indivíduo estar numa determinada comunidade fundada na tradição, e de esta o influenciar, significa duas coisas[13]: que a tradição possibilita o desenvolvimento da individualidade e que pode também atrofiar o desenvolvimento livre. A tradição, como «destino e desafio»[14], postula a assimilação livre e inteligente da tradição, com a consequente atitude crítica, pois a assimilação pessoal é sempre interpretação. Esta resulta da interação daquilo que é transmitido, ou ensinado, com as experiências pessoais, o que sintetiza a possibilidade de continuidade da transmissão e a sua inovação. Razão pela qual há sempre latente uma certa conflitualidade nestes processos. 
O pensar saudável tem, agora, que assumir este facto, integrá-lo. A reflexão que se segue “poderá mostrar que eles [os diversos modelos], sendo embora antagonistas, são talvez complementares; […] que eles são susceptíveis, por conseguinte, de serem integrados sem, para tanto, entrarem em conflito mutuamente devastador e mortífero; que eles são capazes de funcionar, num verdadeiro ritmo histórico, uns como lastro, que dá estabilidade ao navio, outros como motor que o faz andar; que eles constituem campo de jogo passível de regras objectivas, de tipo racional e de relação” [15]. Por último — continua Manuel Antunes —, “a terceira tarefa [depois de destruir e assumir] decorrerá, lógica e fácil: superar. Superar a estreiteza do esquematismo pessoal, superar a estreiteza de todos os esquematismos em geral. Aceitando que a inteligência seja medida pelo real sem excluir o possível. Recusando entregá-la, de mãos e pés atados, ao caprichismo do desejo e às palpitações do irracional. Abrindo àquilo que a funda, justifica a vida e dá sentido à História”[16]. A confiança pessoal e a linguagem cultural são o solo natural que possibilita que cada pessoa seja quem é, no seu percurso vital.
E é este um dos maiores contributos que a crítica da pós-modernidade sobre a modernidade nos pode dar: um indivíduo totalmente autónomo, fechado sobre a sua razão, não existe, é uma ilusão. Mas também não podemos ficar encerrados na radical imanência  do horizonte último de toda a crença.
A transcendência liberta-nos e faz com que cada cultura particular seja criadora e libertadora de todo o sentido. A possibilidade de sermos interpelados de forma absoluta, com a constituição de uma certeza fundamental, ou uma base sobre a qual se possa construir todas as outras dimensões, é posta de parte pela maioria dos pensadores da pós-modernidade. É certo que a transcendência, porque transcende, só pode ser apreendida por cada pessoa no aqui e agora da sua história, por isso limitado e incompleto. Mas é parte integrante do homo credens a aceitação dessa finitude, que nos determina como seres de acolhimento e não como donos e senhores da realidade.
Assim, a pós-modernidade abriu-nos a possibilidade de voltar a pensar a pertinência originária do crer, mas ficou com o caminho incompleto, na medida em que reduziu a produção de sentido à imanência do mundo, encerrando-se na mera realidade do ser humano. Não considerou, esqueceu, a dimensão escatológica do crer, que a nosso ver, é a dimensão mais determinante.
O crer inaugura uma dimensão excessiva em relação à produção de sentido. Na dinâmica do crer, o sentido, mais do que produzido, é acolhido.
O crente, na sua acepção mais genérica, é todo aquele que reconhece, contempla, se espanta e aceita este estatuto de “ser mistério”, a ontologia de “ser dado”. Aceita que o dom originário, embora compreendida e aceite no seu âmago e nas suas consequências, nunca será totalmente captada e dominada pelos saberes humanos, quer pela ciência quer pela práxis: apenas poderá ser acolhido pelo homo credens como algo imerecido, e ao mesmo tempo excessivo em relação a tudo o que sabe e faz.
O ser humano crente é o que sabe como crente, sabe o mundo e o sentido de forma crente, por isso age como crente. O crente sabe-se e sabe o mundo como crente quando se aceita e aceita o mundo como originados e não como origem e fim em si mesmos, por isso o saber do crente é um saber de esperança. E porque se descobre e acolhe como dom gratuito, dá-se aos demais de forma gratuita, com fundamento fora de si — no Outro — pelo que o saber crente gera a ação caritativa.
Pelo que até aqui vimos, podemos considerar que o homo credens é a dimensão basilar de uma compreensão assertiva do ser humano, e a crença — a espiritualidade —  não pode ser considerada, como o tem sido até aqui, como uma dimensão ao lado das outras, muitas vezes ‘arrumada’ na esfera do religioso. Já não faz sentido a compreensão antropológica setorizada nas diversas dimensões do ser humano. Podemos fazer esse exercício de compreensão de forma académica, mas só para facilitar a reflexão e a linguagem, nunca como modelo capaz de dizer e compreender o ser humano.
No processo crente precisamos, por fim, de integrar a hermenêutica[17] — que situa o crer numa tradição, numa cultura e na finitude do processo histórico-cultural do ser humano; e a metafísica — que não limite o crer ao horizonte cultural, antes o percebe em relação com o excesso que o habita por dentro.
Só assim nesta recepção é que nos realizamos como seres livres, que recebemos o dom como sentido e o atualizamos no modo de crer, porque sabemos, agimos e esperamos para além do aqui e agora.

Consciência histórica

É aqui que o facto de sermos devedores de uma tradição, a Hospitalidade, nos torna responsáveis — capazes de responder por nós e pelo que de nós depende — e capazes de pensar e agir sobre o novo, criando novidade. Não, já, presos a meros dados empíricos, mas com eles refletir, ver outras possibilidades, e fazer emergir novos significados que nos são dados pela interação do hoje com a história, assumindo o passado e perspetivando o futuro. Um futuro que seja mais saudável, mais humano e, por isso, pleno.
É neste quadro que consideramos que a Hospitalidade aporta algo de único no campo da assistência sanitária, desde logo pelo modelo referencial que preconiza. Mais, na medida em que este modelo for acolhido e implementado, iremos possibilitar a transmissão da sanação àqueles que connosco contactarem. Mais, na medida em que formos instrumentos de sanação, nós próprios ficaremos mais curados.

Hospitalidade e Nova Evangelização

E aqui emerge uma luz essencial no contexto eclesial que vivemos, o da nova evangelização, que de nova só tem o nome porque é fazer aquilo que sempre se fez, e que Cristo nos mostrou e em Si realizou: anunciar a Boa Nova, curar os que sofrem e dar vida em abundância.
Pois Deus, numa relação de amor salvífico com o homem, sai do Seu mistério, revelando-se. A pessoa, convertendo-se, responde com a fé à verdade transformadora. Por isso, continua a ser tarefa prioritária da sanação dizer, hoje, a Revelação.
A Palavra de Deus apresenta-se, no Antigo Testamento, sob muitos aspetos, mas mantém a característica de ser uma palavra que, simultaneamente, revela e esconde: não se deixa reduzir a simples significados verbais. No Novo Testamento, esvai-se a diferença de níveis de comunicação entre Deus e o homem, provenientes das diferentes naturezas.
«Sabendo Jesus que chegara a Sua hora de passar deste mundo para o Pai, Ele que amara os Seus que estavam no mundo, levou até ao extremo o Seu amor por Eles»(Jo 13, 1). E o auge da doação: a palavra articulada faz-se palavra imolada. Na Cruz, Jesus Cristo mostra o amor de Deus aos homens; a palavra de Deus esgota-se até ao silêncio. A hora da morte e do silêncio é a suprema expressão do amor oferecido à humanidade. Aquilo que na comunicação divina é incomunicável diz-se agora com os braços estendidos e o corpo dilacerado.
No acontecimento ressurreição — onde a humanidade de Cristo se torna veículo para a expressão e manifestação da Sua divindade —, Cristo ratifica-se como código e como chave interpretativa do código que permite penetrar a mensagem divina sem equívocos.
À luz deste acontecimento, a relação entre o homem e Deus é, pois, reflexo do diálogo trinitário, gerador de comunhão amorosa, na qual o homem é chamado a participar. Apesar da dificuldade do cidadão hodierno — fechado sobre si e incapaz de se situar perante o dom —, é preciso continuar a anunciar o Deus que se fez homem e que diviniza a humanidade pela comunicação do seu ser pessoal.
Anunciar Deus de forma sanante leva a descobrir, em conjunto com os vários saberes, outros métodos de comunicar, que integrem a fé e evitem o absurdo. Processo capaz de ser realizado por aqueles que falam como se vissem o invisível, sempre em busca de novos métodos de contar a verdade, marcados sempre pelo imprevisível.
Nesta dinâmica, cada um «acabará por sentir, no mais íntimo da sua humanidade, o apelo duma Proposta transcendente, que foi por vezes rejeitada enquanto expressa em paradigmas ultrapassados, mas que surge agora, nova e disponível, para a reinvenção do futuro»[18]. De um futuro com um Deus tão transcendente que não se deixa reduzir a simples verbalizações que aprisionam, mas tão próximo que chama cada pessoa, do âmago de cada cultura, a uma sanação libertadora: oferecendo-lhe o sentido, como dom.

Sentido

É relativamente recente, na história do pensamento, a abordagem do problema do sentido como uma questão separada. A normalidade era considerar que a referência sobre o ser implicava, necessariamente, a referência ao sentido. Na metafísica clássica, o que se considerava ser era o que por sua vez possuía sentido, de tal modo que o ser e sentido deste equivaliam aproximadamente à mesma coisa.
Mas atualmente, a questão do sentido une todas as pessoas; é a profunda inquietação sobre o sentido da vida, em que toda a Humanidade está unida. A interrogação sobre a condição humana revela o homem como uma interrogação para si mesmo.
Perante o sofrimento, de que a morte é o maior expoente, e o problema do antes e do depois, não se pode deixar de colocar a questão do sentido. E quando a sede de sentido se agudiza, pode chegar-se ao desespero, ao suicídio como expressão máxima da falta de saúde, de ausência de sanação.
A postura que reconhece o homem sedento de absoluto, que não se realiza por esta vida, sem contudo negar a possibilidade de vir a realizar-se. Perante a morte, a radicalidade do problema humano faz emergir na consciência a aspiração que habita o homem: realizar-se infinitamente. «Queria era sentir-me ligado a um destino extrabiológico, a uma vida que não acabasse com a última pancada do coração»[19], escreve Miguel Torga.
A partir da morte pode reconhecer-se, também, a impotência do homem para construir sozinho a sua realização. «O homem é um animal compartilhante. Necessita de sentir as pancadas do coração sincronizadas com as doutros corações, mesmo que sejam corações oceânicos, insensíveis a mágoas de gente. Embora oco de sentido, o rufar dos tambores ajuda a caminhar. Era um parceiro de vida que eu precisava agora, oco tambor que fosse, com o qual acertasse o passo da inquietação»[20]. É aqui se abrem duas hipóteses: ou o homem reconhece que a vida terrena — projeto e aspiração a ser mais — tem sentido e abre a possibilidade da esperança de um futuro transcendente; ou aceita que a vida não tem sentido e é o desespero total.
A descoberta do sentido para a vida, integrando o sentido do sofrimento, revela a precariedade e a finitude de uma vida sobre a qual assenta o desejo de absoluto que se espera. É a descoberta da liberdade ansiada, aquela que se tem devido a uma liberdade transcendente. O desejo de liberdade infinita do homem dá lugar à descoberta da condição de possibilidade da liberdade humana: Deus. A realização humana surge a partir do ser pessoa, da relação.
Mas o sentido é um dom, oferecido pelo mistério do Verbo encarnado. «Na realidade, o mistério do homem só no mistério do Verbo encarnado se esclarece verdadeiramente. […] Cristo, novo Adão, na própria revelação do mistério do Pai e do seu amor, revela o homem a si mesmo e descobre-lhe a vocação sublime»[21]. O mistério do homem revela-se através do mistério de Cristo, chamado a participar da sua filiação. Quando o homem descobre que é amado pelo Pai, em Cristo e através do Espírito, revela-se a si mesmo, descobre a grandeza de ser objecto da benignidade divina, receptor do amor do Pai revelado em Cristo. O mistério trinitário é o único capaz de realizar o homem, é o “mistério iluminador” do sentido. A expressão desse mistério faz-se pela vivência da comunhão, onde o ser «não sem os outros» (Michael de Certaux) impele para a solidariedade e para o diálogo. Miguel Torga escreve que «a Bíblia, o livro dos livros, nos ensina que não há homem sem homem, e que o próprio Cristo teve, a caminho do Calvário, a fortuna dum cireneu para o aliviar do peso da cruz (a dor incurável da solidão). Para mim, pelo menos — continua Torga —, feito dum barro tão frágil e vulnerável, que necessito de ser amado durante a vida e acalentar a esperança de continuar a sê-lo depois da morte»[22].
Jesus Cristo, através da sua vida e pregação, é o mediador do sentido, o único intérprete dos problemas humanos. Em Cristo, o homem pode compreender, realizar e superar-se continuamente.
O homem, em Jesus Cristo, pode ver, por fim, realizada a sua identidade. O ser insaciado sacia-se. A essência e a existência humanas têm um espaço de convergência e realização: Jesus Cristo.

Síntese:

Preconizar um modelo assistencial denominado holístico permite pensar o ser humano sem estreiteza de horizontes. Mais, a assunção de uma antropologia não encerrada apena na e pela razão abre a possibilidade de a pessoa ser mais — é também aquilo que acolhe —, e de dar mais do que tem — dá aquilo que recebeu e incorporou na sua existência, lhe deu sentido.
A sanação, como conceito teológico basilar para compreender a missão da Hospitalidade, não só permite, como obriga, a que exista uma prática antropológica equilibrada, digamos sanada, para que a hospitalidade seja sanante, para curadores e curados!


[1] A epistemologia estuda a origem, a estrutura, os métodos e a validade do conhecimento, pelo que também é conhecida como “Teoria do Conhecimento”. É o estudo crítico dos princípios, hipóteses e resultados das diferentes ciências, procurando determinar-lhes a origem lógica, o valor e o alcance objetivo [Cf. Academia de Ciências de Lisboa, Dicionário da Língua portuguesa contemporânea, Lisboa 2001].
[2] Cf. Pottmeyer, Hermann, “Tradição”, in LATOURELLE, R.; FISICHELLA, R., Dicionário de Teologia Fundamental, ed. Vozes, Petrópolis 1994, 1015.
[3] Seguimos muito de perto o pensamento do teólogo João Duque. Cf.  Duque, João, “Evangelização e mutação cultural. Apologia da cultura táctil”, Theologica, 36 (2001) 1, p. 15-36; Idem, “O conflito das linguagen”, Theologica, 42 (2007) 1, p. 39-52; Idem, “Textos e identidades”, Theologica, 38 (2003) 1, p. 17-31; Idem, Cultura contemporânea e cristianismo, ed. Universidade Católica Portuguesa, Lisboa 2004; Idem, Dizer Deus na pós-modernidade, ed. Universidade Católica Portuguesa/Alcalá, Lisboa 2003; Idem, Homo Credens. Para uma Teologia da Fé, ed. Universidade Católica Portuguesa, Lisboa 2002; Idem, O excesso do dom, ed. Universidade Católica Portuguesa/Alcalá, Lisboa 2004; Idem, “O acesso a Jesus num contexto de disseminação do crer”, Didaskalia 36 (2006) 2, p. 151-162;  Idem, “Para uma estética da fé cristã na modernidade tardia”, Didaskalia 35 (2005) 1-2, p. 617-632; Idem, “Texto, identidade e alteridade”, Didaskalia 33 (2003) 1-2, p. 365-381; Idem, a transparência do conceito. Estudo para uma metafísica teológica, ed. Didaskália, Lisboa 2010.
[4] Ética entendida como conjunto de princípios morais e de conduta pelos quais se rege o indivíduo na sua vida ou no desempenho de uma profissão ou atividade [Cf. Academia de Ciências de Lisboa, Dicionário da Língua portuguesa contemporânea, Lisboa 2001].
[5] Religião: sistema estruturado de doutrinas, crenças, regras e práticas de uma determinada comunidade de pessoas que instituem um determinado tipo de relação com o puder superior, sobre-humano [Cf. Academia de Ciências de Lisboa, Dicionário da Língua portuguesa contemporânea, Lisboa 2001].
[6] O conhecimento é a formação de uma ideia, de uma noção da existência, da natureza, do valor de alguém ou de alguma coisa [Cf. Academia de Ciências de Lisboa, Dicionário da Língua portuguesa contemporânea, Lisboa 2001].
[7] Duque, João, “Homo credens. Para una teología de la fe”, in AA.VV., Antropología y fe Cristiana, ed. Instituto Teologico Compostelano, Santiago de Compostela 2003, 223.
[8] Antropologia é a ciência que estuda o homem, a sua origem e evolução, os seus caracteres físicos ou psíquicos, as suas tendências sociais, as suas relações com o meio ambiente e que se ocupa igualmente das sociedades humanas e das práticas e produções socialmente adquiridas e transmitidas  [Cf. Academia de Ciências de Lisboa, Dicionário da Língua portuguesa contemporânea, Lisboa 2001].
[9] Cf. Pottmeyer, Hermann J., “Tradição”, 1015.
[10] As ideias que expressamos neste texto acerca do homo credens são retiradas de Duque, João, Homo Credens. Para uma Teologia da Fé, ed. Universidade Católica Portuguesa, Lisboa 2002 e do resumo desta obra que o Autor publicou em Duque, João, “Homo credens. Para uma teologia de la fe”, in AA.VV., Antropología y fe Cristiana, ed. Instituto Teologico Compostelano, Santiago de Compostela 2003, 223-236.
[11] Pottmeyer, Hermann J., “Tradição”, 1015.
[12] Ibidem, 1016.
[13] Cf. Ibidem.
[14] Ibidem.
[15] Antunes, Manuel — Acertar a mentalidade, ed. Verbo, Lisboa 1972, 101.
[16] Ibidem, 102.
[17] A hermenêutica estuda a teoria da interpretação, que pode referir-se tanto à arte da interpretação ou à teoria e treino de interpretação. Engloba não somente textos escritos, mas também tudo que há no processo interpretativo. Isso inclui formas verbais e não-verbais de comunicação, assim como aspetos que afetam a comunicação, como preposições, pressupostos, o significado e a filosofia da linguagem e a semiótica.
[18] ARCHER, Luís, “Fé experiencial e tecnologismo do futuro”, in AA.VV. — Fé e Cultura para o ano 2000, ed. Communio, Lisboa 1995, 94.
[19] Torga, Miguel, Diário I, ed. Autor, Coimbra 1941, 27.
[20] Ibidem, Diário IX, ed. Autor, Coimbra 1977, 76-77.
[21] GS 22.
[22] Torga, Miguel, Diário XVI, ed. Autor, Coimbra 1993, 93.

Há dias em que me dá para o cinema!

Vi o “Habemus Papam” de Nanni Moretti, que tem a particularidade de “mostrar” um Vaticano em que, após a morte do Papa, é eleito um novo em Conclave. Até aqui tudo bem. Mas, na hora de ser anunciado, ele sofre um ataque de pânico, entra em depressão e precisa de fazer terapia psiquiátrica. O filme faz uma crítica à crise da Igreja no mundo de hoje. Houve momentos em que ri, para não chorar. A personagem do Papa “deprimido” tem um desempenho extraordinário e, apesar aparentar ser o mais doente, tem o discurso mais lúcido do filme!

Depois vi o “Dos Homens e dos Deuses” de Xavier Beauvais, onde se pode ‘tocar’ com o coração aquilo que é o discernimento, à luz do Mistério da Encarnação.

Foram momentos de síntese marcantes para mim, e como para recordar melhor é preciso algo que marque e que fique, elegi a música de Mercedes Sosa – “Todo Cambia”, que aparece no Habemus Papam. Mas é aí que, em ligação com o discernimento, está a solução, a meu ver: tudo muda, exceto o amor, melhor o Amor.

A propósito, ou não, d«O último segredo»

Ando há dias a terminar de ler um romance «A Alma das Pedras», de Paloma Sanchez-Garnica. Este romance versa sobre a relação entre as peregrinações a Santiago de Compostela e o culto velado ao herege Pelágio.
Logo que termine, vou ler «O último segredo» de José Rodrigues dos Santos.
Quem me conhece, poderá pensar: aquele homem não tem mais que fazer? Tanta literatura boa e anda por ali. Bom, também ando por aqui! Estes tipos de romances, de que o Código de Da Vinci é um bom ícone, são uma expressão de uma certa cultura pseudo-religiosa, que existe e está na mente e coração dos nossos contemporâneos, a quem devo, como crente, propor o sempre novo Evangelho. Daí que esta leitura é uma forma de conhecer e pensar sobre os modos como hoje o ‘religioso’ e as religiões são vistas.
Andava eu nestes pensamentos, quando vejo o texto do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura que transcrevo. É bom ouvir quem sabe, mesmo que queiramos fazer a experiência de «ir lá».

Uma imitação requentada: Nota sobre o romance “O último segredo”, de José Rodrigues dos Santos

O romance de José Rodrigues dos Santos, intitulado “O último segredo”, é formalmente uma obra literária. Nesse sentido, a discussão sobre a sua qualidade literária cabe à crítica especializada e aos leitores. Mas como este romance do autor tem a pretensão de entrar, com um tom de intolerância desabrida, numa outra área, a história da formação da Bíblia por um lado, e a fiabilidade das verdades de Fé em que os católicos acreditam por outro, pensamos que pode ser útil aos leitores exigentes (sejam eles crentes ou não) esclarecer alguns pontos de arbitrariedade em que o dito romance incorre.

1. Em relação à formação da Bíblia e ao debate em torno aos manuscritos, José Rodrigues dos Santos propõe-se, com grande estrondo, arrombar uma porta que há muito está aberta. A questão não se coloca apenas com a Bíblia, mas genericamente com toda a Literatura Antiga: não tendo sido conservados os manuscritos que saíram das mãos dos autores torna-se necessário partir da avaliação das diversas cópias e versões posteriores para reconstruir aquilo que se crê estar mais próximo do texto original. Este problema coloca-se tanto para o Livro do Profeta Isaías, por exemplo, como para os poemas de Homero ou os Diálogos de Platão. Ora, como é que se faz o confronto dos diversos manuscritos e como se decide perante as diferenças que eles apresentam entre si? Há uma ciência que se chama Crítica Textual (Critica Textus, na designação latina) que avalia a fiabilidade dos manuscritos e estabelece os critérios objetivos que nos devem levar a preferir uma variante a outra. A Crítica Textual faz mais ainda: cria as chamadas “edições críticas”, isto é, a apresentação do texto reconstruído, mas com a indicação de todas as variantes existentes e a justificação para se ter escolhido uma em lugar de outra. O grau de certeza em relação às escolhas é diversificado e as próprias dúvidas vêm também assinaladas.
Tanto do texto bíblico do Antigo como do Novo Testamento há extraordinárias edições críticas, elaboradas de forma rigorosíssima do ponto de vista científico, e é sobre essas edições que o trabalho da hermenêutica bíblica se constrói. É impensável, por exemplo, para qualquer estudioso da Bíblia atrever-se a falar dela, como José Rodrigues dos Santos o faz, recorrendo a uma simples tradução. A quantidade de incorreções produzidas em apenas três linhas, que o autor dedica a falar da tradução que usa, são esclarecedoras quanto à indigência do seu estado de arte. Confunde datas e factos, promete o que não tem, fala do que não sabe.

2. Chesterton dizia, com o seu notável humor, que o problema de quem faz da descrença profissão não é deixar de acreditar em alguma coisa, mas passar a acreditar em demasiadas. Poderíamos dizer que é esse o caso do romance de José Rodrigues dos Santos. A nota a garantir que tudo é verdade, colocada estrategicamente à entrada do livro, seria já suficientemente elucidativa. De igual modo, o apontamento final do seu romance, onde arvora o método histórico-crítico como a única chave legítima e verdadeira para entender o texto bíblico. A validade do método de análise histórico-crítica da Bíblia é amplamente reconhecida pela Igreja Católica, como se pode ver no fundamental documento “A interpretação da Bíblia na Igreja Católica” (de 1993). Aí se recomenda o seguinte: «os exegetas católicos devem levar em séria consideração o caráter histórico da revelação bíblica. Pois os dois Testamentos exprimem em palavras humanas, que levam a marca do seu tempo, a revelação histórica que Deus fez… Consequentemente, os exegetas devem servir-se do método histórico-crítico». Mas o método histórico-crítico é insuficiente, como aliás todos os métodos, chamados a operar em complementaridade. Isso ficou dito, no século XX, por pensadores da dimensão de Paul Ricoeur ou Gadamer. José Rodrigues dos Santos parece não saber o que é um teólogo, e dir-se-ia mesmo que desconhece a natureza hipotética (e nesse sentido científica) do trabalho teológico. O positivismo serôdio que levanta como bandeira fá-lo, por exemplo, chamar “historiadores” aos teólogos que pretende promover, e apelide apressadamente de “obras apologéticas” as que o contrariam.

3. A nota final de José Rodrigues dos Santos esconde, porém, a chave do seu caso. Nela aparecem (mal) citados uma série de teólogos, mas o mais abundantemente referido, e o que efetivamente conta, é Bart D. Ehrman. Rodrigues dos Santos faz de Bart D.Ehrman o seu teleponto, a sua revelação. Comparar o seu “Misquoting Jesus. The Story Behind who Changed the Bible and Why” com o “O Último segredo” é tarefa com resultados tão previsíveis que chega a ser deprimente. Ehrman é um dos coordenadores do Departamento de Estudos da Religião, da Universidade da Carolina do Norte, e um investigador de erudição inegável. Contudo, nos últimos anos, tem orientado as suas publicações a partir de uma tese radical, claramente ideológica, longe de ser reconhecida credível. Ehrman reduz o cristianismo das origens a uma imensa batalha pelo poder, que acaba por ser tomado, como seria de esperar, pela tendência mais forte e intolerante. E em nome desse combate pelo poder vale tudo: manobras políticas intermináveis, perseguições, fabricação de textos falsos… Essa luta é transportada para o interior do texto bíblico que, no dizer de Ehrman, está texto repleto de manipulações. O que os seus pares universitários perguntam a Ehrman, com perplexidade, é em que fontes textuais ele assenta as hipóteses extremadas que defende.

4. Resumindo: é lamentável que José Rodrigues dos Santos interrogue (e se interrogue) tão pouco. É lamentável que escreva centenas de páginas sobre um assunto tão complexo sem fazer ideia do que fala. O resultado é bastante penoso e desinteressante, como só podia ser: uma imitação requentada, superficial e maçuda. O que a verdadeira literatura faz é agredir a imitação para repropor a inteligência. O que José Rodrigues dos Santos faz é agredir a inteligência para que triunfe o pastiche. E assim vamos.
Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura
© SNPC | 23.10.11

La Ultima Cima

Eu conheci Pablo Dominguez!
Cada vez gosto mais de ter estado em «San Dámaso» e pela primeira vez dei valor ao Diploma que me deram: ele era o Decano de Teologia!

YOUCAT – Catecismo Jovem da Igreja Católica

Acabei de passar algum tempo com o YOUCAT nas mãos. Está muito bonito, agradável, sintético e incisivo!
O Catecismo, seja ele qual for, é sempre jovem, porque a sua jovialidade e beleza vêm da adesão a Jesus Cristo, que é sempre jovem: cheio de novidade, encanto e vida.
Mas esta edição, coordenada pelo Cardeal Christoph Schoenboorn, actual Arcebispo de Viena, está com uma redacção e grafismo muito agradável. O facto de este Cardeal ter sido o Secretário Geral do Catecismo da Igreja Católica dá-nos a certeza de esta edição destinada aos jovens, par além dos conteúdos, mantém a dinâmica interna do CCE.
A editora Paulus, que o edita em Portugal, além de o traduzir adaptou-o também ao nosso contexto, através da escolha de imagens ‘portuguesas’.
Mas mais do que o que eu diga, vejamos excertos a obra aqui.

Avaliar para projectar a Pastoral

Texto do Sr. D. Jorge Ortiga para os trabalhos do Conselho Pastoral Arquidiocesano. [o sublinhado é meu]

Permiti que inicie este encontro do Conselho Pastoral com as palavras do grande teólogo Karl Rahner:

As pessoas já não serão cristãs pela simples força do hábito, da tradição, da história ou da ordem estabelecida. Ainda menos, pelo facto da fé impregnar universalmente a sociedade. Pelo contrário, se exceptuarmos a influência exercida pelos pais cristãos, o ambiente familiar ou os pequenos grupos restritos, as pessoas já não serão capazes de ser cristãs, se não for graças a uma fé verdadeiramente pessoal que sem cessar deverão fazer crescer. A Igreja terá entrado, pela vontade do Senhor, Mestre da história, num tempo novo. Em todos os domínios ficará reduzida às únicas forças da fé e da santidade: não poderá contar quase nada com o prestígio de uma instituição puramente exterior. Não será já a instituição a formar os corações, mas sim os corações a fazer subsistir a instituição.”

Vivemos tempos novos. É um facto. Tempos que exigem atitudes renovadas pela força do Espírito Santo que nos impele a sair do Pátio de Jerusalém para o Pátio dos Gentios, Pátio do Encontro. Esta responsabilidade missionária recorda-nos essencialmente a novidade da transmissão da fé pelo testemunho pessoal do encontro transfigurante com Cristo. A Pastoral nunca poderá ser repetitiva, uma espécie de fotocópia com alterações de circunstância litúrgica ou canónica, mas deve sim reflectir a sua adequação à mudança dos tempos na fidelidade à memória cristã.
Definitivamente, e é preciso dizê-lo de forma clara, já não estamos em tempo de cristandade, de agirmos segundo critérios e opiniões meramente pessoais. Sem darmos conta caímos facilmente no relativismo eclesial, em que cada um faz dos seus gostos pessoais critério absoluto de toda a pastoral. O que de si é já um paradoxo que S. Paulo denuncia: “Quando, pois, vos reunis, não é a ceia do Senhor que comeis, pois cada um se apressa a tomar a sua própria ceia […] Por isso, meus irmãos, quando vos reunir para comer, esperai uns pelos outros” (1Cor 20.33).
A abertura aos novos tempos também não pode significar um apego acrítico e sem consistência. Significa, pelo contrário, duas atitudes constitutivas de um novo agir eclesial: a necessidade permanente de avaliar e a serenidade ousada de projectar o futuro. Não podemos ter medo de avaliar. É fácil elaborar Planos Pastorais, difícil é pararmos para reflectir o caminho andado e aceitar as deficiências e a responsabilidade por não ter atingido os objectivos.
Infelizmente constato que há comunidades que não só não se deixaram interpelar pelos objectivos propostos porque nunca ouviram falar das propostas diocesanas. Interrogo-me também se os nossos movimentos conseguem articular a peculiaridade do seu carisma com as orientações diocesanas? Se os Institutos Religiosos conseguem situar-se no nosso contexto enriquecendo-o com as suas potencialidades? Não quero formular nenhum juízo nem muito menos condenar alguém. Na sinceridade que preocupa um responsável pela Arquidiocese, só pretendo suscitar uma avaliação que manifeste verdadeira corresponsabilidade eclesial nos resultados que os três anos destinados à Palavra deixaram ou não na vida dos crentes e das comunidades cristãs.
Se avaliar exige frontalidade, o Conselho Arquidiocesano de Pastoral não pode eximir-se à responsabilidade de ver o futuro e projectar um itinerário que consolide as opções pastorais já delineadas no sentido de determinar uma evangelização capaz de congregar os cristãos em torno do anúncio da Boa-Nova do Reino. Todos sonhamos com uma Igreja renovada através de comunidades renovadas. Mas é preciso pensar primeiramente que Igreja somos e que queremos ser? Como vivemos a dimensão comunitária e pessoal da fé? Como acolhemos o “mistério” da revelação de Deus? Será que a secularização da sociedade secularizou a vida dos sacerdotes e dos leigos deixando-nos a mercê do sabor dos ventos da moda e do materialismo vazio? Como podemos continuar a falar do sentido de Deus se vivemos uma fé sem sentido nem assentimento? O tempo actual está ávido da esperança de Deus, que é fonte de toda a sabedoria e de toda a beleza.
Demos graças a Deus pela Igreja que somos e não fechemos o coração a Cristo que continua a bater no coração de cada pessoa. O Mestre quer entrar e cear connosco numa comunhão festiva que congregue a todos. Na alegria de fazermos festa não posso deixar de pedir às comunidades uma maior atenção às orientações económico-sociais de muitas famílias, à real situação de solidão em que muitos irmãos vivem, à perplexidade que caracteriza o presente de muita gente e se agrava num horizonte que parece não ter saída. O caminho da Igreja é dizer bem alto que há sentido na vida a partir de Deus.
Que o trabalho deste Conselho Pastoral, reunido para avaliar o caminho realizado até aqui e para pensar no amanhã, contribua para a renovação e para o fortalecimento da comunhão da Igreja bracarense.
Centro Cultural, 26-02-11
Jorge Ortiga, Arcebispo Primaz