Qualidade Espiritual e Sanação

Qualidade Espiritual e Sanação 

A abordagem epistemológica[1] do ser humano, pelo menos nosso contexto ocidental, assistiu a uma substituição sucessiva de diversos modelos compreensivos da realidade, que foram dominando em cada contexto histórico-cultural.
E nem sempre, estamos em crer, estas transições foram ou são pacíficas e bem entendidas. Nem sempre a tradição, como processo normal de gerar e comunicar cultura, é valorizada corretamente e de modo construtivo, para a compreensão do ser humano.
Esta visão crítica da tradição tem as suas raízes bem antigas. Começou quando, na Grécia, se passou do mythos para o logos[2], dando origem à sucessão de diversos modelos reflexivos[3]. Do contexto grego-romano chegou-nos o homo politicus onde a polis é o horizonte de referência para a qual se orientava a ética[4], a religião[5] e o conhecimento[6].
A este sucedeu-se o homo religiousus medieval. Embora se trate de uma religiosidade percebida mais em contexto social que individual, procurava-se que a cidade terrena fosse um espelho, ainda que pálido, da Civitate Dei.
Com o advento da modernidade ­surgiu o homo sapiens, ainda que em tensão com o homo faber. O homo sapiens é entendido «no sentido racionalista, ou seja, como metáfora para o domínio da razão humana sobre todo o real. Neste sentido, encontra-se presente tanto na sua versão de ciência empírica como a de idealismo absoluto. Também aqui não se esqueceu a dimensão política, mas agora colocada ao serviço da razão universal e, em simultâneo, subjetiva»[7].
Do homo faber, do progresso industrial e tecnológico, emerge o homo communicans, o homo videns e, por último, o homo virtual. Em que o real nem sempre é físico — nas quatro dimensões do real físico — antes existe nos espaços virtuais gerados e subsistentes na interação das novas tecnologias electrónicas, onde só a ilusão do tempo e do espaço, ou melhor, da sua anulação parecem importar, ficando-se apenas pela representação virtual. Não já do real físico, mas do real abstrato e fabricável.
Neste contexto da modernidade, o homo scientificus do positivismo é um dos exemplos mais claros desta redução, simultaneamente, idealista e empirista da antropologia.
Mas a modernidade, com as suas tendências monolíticas e reducionistas, gerou uma crise, dando origem à pós-modernidade. E esta, entre outras coisas, põe em relevo aquilo que na modernidade esteve em falta: o ser humano não se pode definir univocamente, antes precisa de ser visto em diversas dimensões, todas elas imprescindíveis para a compreensão antropológica. Não de forma justaposta, mas integrada e relacionada.
Mas há uma visão fundamental, que antecede e torna possível todas as outras — e aqui somos muito devedores à reflexão de João Duque —  que é a do homo credens. João Duque, na sua obra, faz convergir a partir daqui, de forma orgânica e equilibrada, todas as dimensões do ser humano, em ordem a uma antropologia[8] integral. E supera todo tipo de dualismos, dando resposta às posições filosóficas da pós-modernidade. Pelo menos as mais significativas.

Tradição

Nos tempos que correm, fortemente influenciados pela modernidade já superada, as tradições são postas em causa, pois crê-se que com o progresso científico-técnico o ser humano, recorrendo apenas à razão, pode encontrar em si, e de forma autónoma, a totalidade das suas motivações e, por isso, todo o conhecimento. Mas isto, que é um preconceito contra a tradição, redunda na negação daquilo que quer afirmar: não há lugar à verdade, mas sim à ideologia, com a consequente perda de liberdade e a desumanização[9].
O saber em si não é o que acontece primeiro, nem o fundamento último de tudo, pois o saber da possibilidade de saber, que o mundo existe e habitamos nele, que a linguagem me permite interagir no e com o mundo e falar a outros deste mundo, não se sabe nem se demonstra, antes crê-se. O que implica que, antes de qualquer operação de interação e conhecimento, o ser humano recebe uma linguagem, sobretudo da sua cultura e do seu contexto, que lhe oferece uma estrutura possibilitadora de tudo o demais. O ‘pensar’ absolutamente subjetivo, sem recurso a nada exterior, não é possível.
Wittgenstein refere o “leito da fé” para significar tudo o que precede o indivíduo e que o sujeito terá que acolher, como condição de possibilidade da sua mesma subjetividade. Ou seja,  em termos epistemológicos, o crer antecede o saber e o fazer. A confiança pessoais e a linguagem cultural são, então, a condição imprescindível para que o ser humano seja que é, tenha um sentido, um percurso vital. Claro que somos livres: podemos rejeitar, transformar, assimilar e transmitir criativamente o que recebemos, mas só se primeiro acolhermos. A dinâmica da construção da identidade própria implica todas as dimensões do ser humano, onde a dimensão crente — que acolhe o dom oferecido — é a mais ampla, originária e fundamental[10].
A transmissão de verdades mais não é que o reconhecimento de que o ser humano é um «ser da tradição»[11], sendo esta constitutiva da cultura humana, na medida em que acolhe, transmite, destrói e cria novas tradições, ou melhor, reorganiza e faz evoluir a tradição. Aqui ressalta a linguagem, ou linguagens, como elemento de destaque, porque é ela que permite a transmissão. A linguagem é, então, em simultâneo, meio de transmissão cultural e elemento constitutivo da tradição. Esta, por seu turno, dá resposta cultural a duas limitações do ser humano: a finitude e a necessidade de não se começar sempre do início, mas de assumir e acolher as descobertas precedentes para, sobre elas, construir e elaborar novas conquistas. A linguagem permite que se realizem processos de transmissão, de sanação, onde é entregue ao indivíduo algo que o transcende no tempo e no espaço, e que ele acolhe, fazendo-o seu, para, por seu turno, na medida em que acolhe, transmitir. É neste quadro conceptual que entendemos a tradição como transmissão e, por isso, sobreposto conceptualmente a sanação, já que o entregar e receber não é um ato de alguém sobre alguém, mas uma interação de, pelo menos, dois sujeitos, que ativamente se empenham no mesmo processo.  É um processo comunitário, em ordem a uma libertação total do indivíduo, por isso, sanante.
As verdadeiras tradições assumem um processo libertador e orientador, já que «diante de uma multidão de possibilidades de perceber, pensar e agir que pode paralisar o homem, coloca-lhe à disposição determinados modelos ou “guiding patterns” de perceber, pensar e agir»[12], bem como um ambiente comunitário gerador de instâncias de controle e garantes da tradição normativa, num determinado contexto cultural. Este processo é evolutivo porque constituído, em simultâneo, pelos transmissores e pelos receptores que, posteriormente, se assumem também como transmissores, fazendo de cada sujeito, em simultâneo, curador e curado.
Este processo afeta a personalidade, pois o facto de um indivíduo estar numa determinada comunidade fundada na tradição, e de esta o influenciar, significa duas coisas[13]: que a tradição possibilita o desenvolvimento da individualidade e que pode também atrofiar o desenvolvimento livre. A tradição, como «destino e desafio»[14], postula a assimilação livre e inteligente da tradição, com a consequente atitude crítica, pois a assimilação pessoal é sempre interpretação. Esta resulta da interação daquilo que é transmitido, ou ensinado, com as experiências pessoais, o que sintetiza a possibilidade de continuidade da transmissão e a sua inovação. Razão pela qual há sempre latente uma certa conflitualidade nestes processos. 
O pensar saudável tem, agora, que assumir este facto, integrá-lo. A reflexão que se segue “poderá mostrar que eles [os diversos modelos], sendo embora antagonistas, são talvez complementares; […] que eles são susceptíveis, por conseguinte, de serem integrados sem, para tanto, entrarem em conflito mutuamente devastador e mortífero; que eles são capazes de funcionar, num verdadeiro ritmo histórico, uns como lastro, que dá estabilidade ao navio, outros como motor que o faz andar; que eles constituem campo de jogo passível de regras objectivas, de tipo racional e de relação” [15]. Por último — continua Manuel Antunes —, “a terceira tarefa [depois de destruir e assumir] decorrerá, lógica e fácil: superar. Superar a estreiteza do esquematismo pessoal, superar a estreiteza de todos os esquematismos em geral. Aceitando que a inteligência seja medida pelo real sem excluir o possível. Recusando entregá-la, de mãos e pés atados, ao caprichismo do desejo e às palpitações do irracional. Abrindo àquilo que a funda, justifica a vida e dá sentido à História”[16]. A confiança pessoal e a linguagem cultural são o solo natural que possibilita que cada pessoa seja quem é, no seu percurso vital.
E é este um dos maiores contributos que a crítica da pós-modernidade sobre a modernidade nos pode dar: um indivíduo totalmente autónomo, fechado sobre a sua razão, não existe, é uma ilusão. Mas também não podemos ficar encerrados na radical imanência  do horizonte último de toda a crença.
A transcendência liberta-nos e faz com que cada cultura particular seja criadora e libertadora de todo o sentido. A possibilidade de sermos interpelados de forma absoluta, com a constituição de uma certeza fundamental, ou uma base sobre a qual se possa construir todas as outras dimensões, é posta de parte pela maioria dos pensadores da pós-modernidade. É certo que a transcendência, porque transcende, só pode ser apreendida por cada pessoa no aqui e agora da sua história, por isso limitado e incompleto. Mas é parte integrante do homo credens a aceitação dessa finitude, que nos determina como seres de acolhimento e não como donos e senhores da realidade.
Assim, a pós-modernidade abriu-nos a possibilidade de voltar a pensar a pertinência originária do crer, mas ficou com o caminho incompleto, na medida em que reduziu a produção de sentido à imanência do mundo, encerrando-se na mera realidade do ser humano. Não considerou, esqueceu, a dimensão escatológica do crer, que a nosso ver, é a dimensão mais determinante.
O crer inaugura uma dimensão excessiva em relação à produção de sentido. Na dinâmica do crer, o sentido, mais do que produzido, é acolhido.
O crente, na sua acepção mais genérica, é todo aquele que reconhece, contempla, se espanta e aceita este estatuto de “ser mistério”, a ontologia de “ser dado”. Aceita que o dom originário, embora compreendida e aceite no seu âmago e nas suas consequências, nunca será totalmente captada e dominada pelos saberes humanos, quer pela ciência quer pela práxis: apenas poderá ser acolhido pelo homo credens como algo imerecido, e ao mesmo tempo excessivo em relação a tudo o que sabe e faz.
O ser humano crente é o que sabe como crente, sabe o mundo e o sentido de forma crente, por isso age como crente. O crente sabe-se e sabe o mundo como crente quando se aceita e aceita o mundo como originados e não como origem e fim em si mesmos, por isso o saber do crente é um saber de esperança. E porque se descobre e acolhe como dom gratuito, dá-se aos demais de forma gratuita, com fundamento fora de si — no Outro — pelo que o saber crente gera a ação caritativa.
Pelo que até aqui vimos, podemos considerar que o homo credens é a dimensão basilar de uma compreensão assertiva do ser humano, e a crença — a espiritualidade —  não pode ser considerada, como o tem sido até aqui, como uma dimensão ao lado das outras, muitas vezes ‘arrumada’ na esfera do religioso. Já não faz sentido a compreensão antropológica setorizada nas diversas dimensões do ser humano. Podemos fazer esse exercício de compreensão de forma académica, mas só para facilitar a reflexão e a linguagem, nunca como modelo capaz de dizer e compreender o ser humano.
No processo crente precisamos, por fim, de integrar a hermenêutica[17] — que situa o crer numa tradição, numa cultura e na finitude do processo histórico-cultural do ser humano; e a metafísica — que não limite o crer ao horizonte cultural, antes o percebe em relação com o excesso que o habita por dentro.
Só assim nesta recepção é que nos realizamos como seres livres, que recebemos o dom como sentido e o atualizamos no modo de crer, porque sabemos, agimos e esperamos para além do aqui e agora.

Consciência histórica

É aqui que o facto de sermos devedores de uma tradição, a Hospitalidade, nos torna responsáveis — capazes de responder por nós e pelo que de nós depende — e capazes de pensar e agir sobre o novo, criando novidade. Não, já, presos a meros dados empíricos, mas com eles refletir, ver outras possibilidades, e fazer emergir novos significados que nos são dados pela interação do hoje com a história, assumindo o passado e perspetivando o futuro. Um futuro que seja mais saudável, mais humano e, por isso, pleno.
É neste quadro que consideramos que a Hospitalidade aporta algo de único no campo da assistência sanitária, desde logo pelo modelo referencial que preconiza. Mais, na medida em que este modelo for acolhido e implementado, iremos possibilitar a transmissão da sanação àqueles que connosco contactarem. Mais, na medida em que formos instrumentos de sanação, nós próprios ficaremos mais curados.

Hospitalidade e Nova Evangelização

E aqui emerge uma luz essencial no contexto eclesial que vivemos, o da nova evangelização, que de nova só tem o nome porque é fazer aquilo que sempre se fez, e que Cristo nos mostrou e em Si realizou: anunciar a Boa Nova, curar os que sofrem e dar vida em abundância.
Pois Deus, numa relação de amor salvífico com o homem, sai do Seu mistério, revelando-se. A pessoa, convertendo-se, responde com a fé à verdade transformadora. Por isso, continua a ser tarefa prioritária da sanação dizer, hoje, a Revelação.
A Palavra de Deus apresenta-se, no Antigo Testamento, sob muitos aspetos, mas mantém a característica de ser uma palavra que, simultaneamente, revela e esconde: não se deixa reduzir a simples significados verbais. No Novo Testamento, esvai-se a diferença de níveis de comunicação entre Deus e o homem, provenientes das diferentes naturezas.
«Sabendo Jesus que chegara a Sua hora de passar deste mundo para o Pai, Ele que amara os Seus que estavam no mundo, levou até ao extremo o Seu amor por Eles»(Jo 13, 1). E o auge da doação: a palavra articulada faz-se palavra imolada. Na Cruz, Jesus Cristo mostra o amor de Deus aos homens; a palavra de Deus esgota-se até ao silêncio. A hora da morte e do silêncio é a suprema expressão do amor oferecido à humanidade. Aquilo que na comunicação divina é incomunicável diz-se agora com os braços estendidos e o corpo dilacerado.
No acontecimento ressurreição — onde a humanidade de Cristo se torna veículo para a expressão e manifestação da Sua divindade —, Cristo ratifica-se como código e como chave interpretativa do código que permite penetrar a mensagem divina sem equívocos.
À luz deste acontecimento, a relação entre o homem e Deus é, pois, reflexo do diálogo trinitário, gerador de comunhão amorosa, na qual o homem é chamado a participar. Apesar da dificuldade do cidadão hodierno — fechado sobre si e incapaz de se situar perante o dom —, é preciso continuar a anunciar o Deus que se fez homem e que diviniza a humanidade pela comunicação do seu ser pessoal.
Anunciar Deus de forma sanante leva a descobrir, em conjunto com os vários saberes, outros métodos de comunicar, que integrem a fé e evitem o absurdo. Processo capaz de ser realizado por aqueles que falam como se vissem o invisível, sempre em busca de novos métodos de contar a verdade, marcados sempre pelo imprevisível.
Nesta dinâmica, cada um «acabará por sentir, no mais íntimo da sua humanidade, o apelo duma Proposta transcendente, que foi por vezes rejeitada enquanto expressa em paradigmas ultrapassados, mas que surge agora, nova e disponível, para a reinvenção do futuro»[18]. De um futuro com um Deus tão transcendente que não se deixa reduzir a simples verbalizações que aprisionam, mas tão próximo que chama cada pessoa, do âmago de cada cultura, a uma sanação libertadora: oferecendo-lhe o sentido, como dom.

Sentido

É relativamente recente, na história do pensamento, a abordagem do problema do sentido como uma questão separada. A normalidade era considerar que a referência sobre o ser implicava, necessariamente, a referência ao sentido. Na metafísica clássica, o que se considerava ser era o que por sua vez possuía sentido, de tal modo que o ser e sentido deste equivaliam aproximadamente à mesma coisa.
Mas atualmente, a questão do sentido une todas as pessoas; é a profunda inquietação sobre o sentido da vida, em que toda a Humanidade está unida. A interrogação sobre a condição humana revela o homem como uma interrogação para si mesmo.
Perante o sofrimento, de que a morte é o maior expoente, e o problema do antes e do depois, não se pode deixar de colocar a questão do sentido. E quando a sede de sentido se agudiza, pode chegar-se ao desespero, ao suicídio como expressão máxima da falta de saúde, de ausência de sanação.
A postura que reconhece o homem sedento de absoluto, que não se realiza por esta vida, sem contudo negar a possibilidade de vir a realizar-se. Perante a morte, a radicalidade do problema humano faz emergir na consciência a aspiração que habita o homem: realizar-se infinitamente. «Queria era sentir-me ligado a um destino extrabiológico, a uma vida que não acabasse com a última pancada do coração»[19], escreve Miguel Torga.
A partir da morte pode reconhecer-se, também, a impotência do homem para construir sozinho a sua realização. «O homem é um animal compartilhante. Necessita de sentir as pancadas do coração sincronizadas com as doutros corações, mesmo que sejam corações oceânicos, insensíveis a mágoas de gente. Embora oco de sentido, o rufar dos tambores ajuda a caminhar. Era um parceiro de vida que eu precisava agora, oco tambor que fosse, com o qual acertasse o passo da inquietação»[20]. É aqui se abrem duas hipóteses: ou o homem reconhece que a vida terrena — projeto e aspiração a ser mais — tem sentido e abre a possibilidade da esperança de um futuro transcendente; ou aceita que a vida não tem sentido e é o desespero total.
A descoberta do sentido para a vida, integrando o sentido do sofrimento, revela a precariedade e a finitude de uma vida sobre a qual assenta o desejo de absoluto que se espera. É a descoberta da liberdade ansiada, aquela que se tem devido a uma liberdade transcendente. O desejo de liberdade infinita do homem dá lugar à descoberta da condição de possibilidade da liberdade humana: Deus. A realização humana surge a partir do ser pessoa, da relação.
Mas o sentido é um dom, oferecido pelo mistério do Verbo encarnado. «Na realidade, o mistério do homem só no mistério do Verbo encarnado se esclarece verdadeiramente. […] Cristo, novo Adão, na própria revelação do mistério do Pai e do seu amor, revela o homem a si mesmo e descobre-lhe a vocação sublime»[21]. O mistério do homem revela-se através do mistério de Cristo, chamado a participar da sua filiação. Quando o homem descobre que é amado pelo Pai, em Cristo e através do Espírito, revela-se a si mesmo, descobre a grandeza de ser objecto da benignidade divina, receptor do amor do Pai revelado em Cristo. O mistério trinitário é o único capaz de realizar o homem, é o “mistério iluminador” do sentido. A expressão desse mistério faz-se pela vivência da comunhão, onde o ser «não sem os outros» (Michael de Certaux) impele para a solidariedade e para o diálogo. Miguel Torga escreve que «a Bíblia, o livro dos livros, nos ensina que não há homem sem homem, e que o próprio Cristo teve, a caminho do Calvário, a fortuna dum cireneu para o aliviar do peso da cruz (a dor incurável da solidão). Para mim, pelo menos — continua Torga —, feito dum barro tão frágil e vulnerável, que necessito de ser amado durante a vida e acalentar a esperança de continuar a sê-lo depois da morte»[22].
Jesus Cristo, através da sua vida e pregação, é o mediador do sentido, o único intérprete dos problemas humanos. Em Cristo, o homem pode compreender, realizar e superar-se continuamente.
O homem, em Jesus Cristo, pode ver, por fim, realizada a sua identidade. O ser insaciado sacia-se. A essência e a existência humanas têm um espaço de convergência e realização: Jesus Cristo.

Síntese:

Preconizar um modelo assistencial denominado holístico permite pensar o ser humano sem estreiteza de horizontes. Mais, a assunção de uma antropologia não encerrada apena na e pela razão abre a possibilidade de a pessoa ser mais — é também aquilo que acolhe —, e de dar mais do que tem — dá aquilo que recebeu e incorporou na sua existência, lhe deu sentido.
A sanação, como conceito teológico basilar para compreender a missão da Hospitalidade, não só permite, como obriga, a que exista uma prática antropológica equilibrada, digamos sanada, para que a hospitalidade seja sanante, para curadores e curados!


[1] A epistemologia estuda a origem, a estrutura, os métodos e a validade do conhecimento, pelo que também é conhecida como “Teoria do Conhecimento”. É o estudo crítico dos princípios, hipóteses e resultados das diferentes ciências, procurando determinar-lhes a origem lógica, o valor e o alcance objetivo [Cf. Academia de Ciências de Lisboa, Dicionário da Língua portuguesa contemporânea, Lisboa 2001].
[2] Cf. Pottmeyer, Hermann, “Tradição”, in LATOURELLE, R.; FISICHELLA, R., Dicionário de Teologia Fundamental, ed. Vozes, Petrópolis 1994, 1015.
[3] Seguimos muito de perto o pensamento do teólogo João Duque. Cf.  Duque, João, “Evangelização e mutação cultural. Apologia da cultura táctil”, Theologica, 36 (2001) 1, p. 15-36; Idem, “O conflito das linguagen”, Theologica, 42 (2007) 1, p. 39-52; Idem, “Textos e identidades”, Theologica, 38 (2003) 1, p. 17-31; Idem, Cultura contemporânea e cristianismo, ed. Universidade Católica Portuguesa, Lisboa 2004; Idem, Dizer Deus na pós-modernidade, ed. Universidade Católica Portuguesa/Alcalá, Lisboa 2003; Idem, Homo Credens. Para uma Teologia da Fé, ed. Universidade Católica Portuguesa, Lisboa 2002; Idem, O excesso do dom, ed. Universidade Católica Portuguesa/Alcalá, Lisboa 2004; Idem, “O acesso a Jesus num contexto de disseminação do crer”, Didaskalia 36 (2006) 2, p. 151-162;  Idem, “Para uma estética da fé cristã na modernidade tardia”, Didaskalia 35 (2005) 1-2, p. 617-632; Idem, “Texto, identidade e alteridade”, Didaskalia 33 (2003) 1-2, p. 365-381; Idem, a transparência do conceito. Estudo para uma metafísica teológica, ed. Didaskália, Lisboa 2010.
[4] Ética entendida como conjunto de princípios morais e de conduta pelos quais se rege o indivíduo na sua vida ou no desempenho de uma profissão ou atividade [Cf. Academia de Ciências de Lisboa, Dicionário da Língua portuguesa contemporânea, Lisboa 2001].
[5] Religião: sistema estruturado de doutrinas, crenças, regras e práticas de uma determinada comunidade de pessoas que instituem um determinado tipo de relação com o puder superior, sobre-humano [Cf. Academia de Ciências de Lisboa, Dicionário da Língua portuguesa contemporânea, Lisboa 2001].
[6] O conhecimento é a formação de uma ideia, de uma noção da existência, da natureza, do valor de alguém ou de alguma coisa [Cf. Academia de Ciências de Lisboa, Dicionário da Língua portuguesa contemporânea, Lisboa 2001].
[7] Duque, João, “Homo credens. Para una teología de la fe”, in AA.VV., Antropología y fe Cristiana, ed. Instituto Teologico Compostelano, Santiago de Compostela 2003, 223.
[8] Antropologia é a ciência que estuda o homem, a sua origem e evolução, os seus caracteres físicos ou psíquicos, as suas tendências sociais, as suas relações com o meio ambiente e que se ocupa igualmente das sociedades humanas e das práticas e produções socialmente adquiridas e transmitidas  [Cf. Academia de Ciências de Lisboa, Dicionário da Língua portuguesa contemporânea, Lisboa 2001].
[9] Cf. Pottmeyer, Hermann J., “Tradição”, 1015.
[10] As ideias que expressamos neste texto acerca do homo credens são retiradas de Duque, João, Homo Credens. Para uma Teologia da Fé, ed. Universidade Católica Portuguesa, Lisboa 2002 e do resumo desta obra que o Autor publicou em Duque, João, “Homo credens. Para uma teologia de la fe”, in AA.VV., Antropología y fe Cristiana, ed. Instituto Teologico Compostelano, Santiago de Compostela 2003, 223-236.
[11] Pottmeyer, Hermann J., “Tradição”, 1015.
[12] Ibidem, 1016.
[13] Cf. Ibidem.
[14] Ibidem.
[15] Antunes, Manuel — Acertar a mentalidade, ed. Verbo, Lisboa 1972, 101.
[16] Ibidem, 102.
[17] A hermenêutica estuda a teoria da interpretação, que pode referir-se tanto à arte da interpretação ou à teoria e treino de interpretação. Engloba não somente textos escritos, mas também tudo que há no processo interpretativo. Isso inclui formas verbais e não-verbais de comunicação, assim como aspetos que afetam a comunicação, como preposições, pressupostos, o significado e a filosofia da linguagem e a semiótica.
[18] ARCHER, Luís, “Fé experiencial e tecnologismo do futuro”, in AA.VV. — Fé e Cultura para o ano 2000, ed. Communio, Lisboa 1995, 94.
[19] Torga, Miguel, Diário I, ed. Autor, Coimbra 1941, 27.
[20] Ibidem, Diário IX, ed. Autor, Coimbra 1977, 76-77.
[21] GS 22.
[22] Torga, Miguel, Diário XVI, ed. Autor, Coimbra 1993, 93.

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